Trabalhar é preciso, descansar também!
Trabalho constante, glorificado nos ditados populares, nos leva ao sucesso ou à exaustão?
Os ditados populares são frequentemente vistos como sabedoria acumulada ao longo dos anos, transmitidos de geração em geração. Eles parecem inofensivos, oferecendo conselhos práticos sobre a vida cotidiana. No entanto, muitos desses provérbios revelam uma manipulação sutil para moldar o comportamento das pessoas em direção ao trabalho incessante. Esses ditados não são apenas expressões de moralidade; eles são ferramentas que servem a interesses econômicos e sociais, frequentemente beneficiando as classes dominantes.
O trabalho é essencial, disso ninguém duvida. Sem ele, nada se constrói. Porém, devemos questionar a maneira como fomos ensinados a enxergar o trabalho e o descanso. A manipulação sutil, que associa o descanso à preguiça, é uma forma de exploração. Um exemplo simples: alguém liga para você em um domingo às 7 horas da manhã. Quando você atende, a pessoa pergunta: “Estava dormindo?”. Mesmo que estivesse, você provavelmente responderia “não”, para não ser visto como preguiçoso. Isso acontece porque existe uma pressão social, que nos faz sentir vergonha de descansar.
O poder da manipulação através dos ditados populares
O sociólogo alemão Max Weber, em seu livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, apontou que essa ética se originou, em grande parte, de crenças religiosas protestantes, nas quais o sucesso material era visto como sinal da graça divina, e construiu a mentalidade que glorifica o trabalho incessante e, ao mesmo tempo, demoniza o ócio.
Ditados como “Deus ajuda a quem cedo madruga”, “o trabalho dignifica o homem”, “quem não trabalha, não come”, “descansar é para os fracos”, “mente vazia, oficina do diabo”, “não deixe para amanhã o que você pode fazer hoje” reforçam essa visão, criando uma cultura que glorifica o esforço contínuo, sem dar espaço para a recuperação física e mental. E enquanto o esforço contínuo é, de fato, necessário para a realização de metas, essa cultura também desvaloriza o descanso e o lazer considerando que são horas “improdutivas”, o que não interessa a quem emprega.
Além disso, há uma valorização clara do trabalho braçal duro e cansativo em detrimento do trabalho intelectual. O esforço físico e o desgaste do corpo muitas vezes são considerados mais nobres e dignos do que a reflexão e a análise, que são essenciais para o progresso social e cultural. Essa valorização do trabalho manual também reflete a visão que glorifica a luta e o sacrifício, perpetuando a ideia de que apenas o esforço físico é digno de reconhecimento.
A realidade brasileira e a exploração do trabalho
Desde a época colonial, com a exploração da mão de obra escrava, até os dias atuais, o trabalho árduo foi sempre exaltado. A ideia do “trabalhador incansável” se consolidou no país durante a industrialização, e muitos desses ditados reforçam uma visão religiosa e quase romântica do sacrifício e do esforço contínuo. Infelizmente, em pleno século XXI, vemos continuamente casos de libertação de trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão.
A valorização extrema do trabalho tem raízes históricas que, muitas vezes, servem para justificar a exploração da mão de obra, que, tanto no passado quanto hoje, se disfarça por trás de valores morais com a mensagem de que só somos dignos se estivermos sempre trabalhando. Ou então, impregnado pela cultura machista, o simples fato de a pessoa estar trabalhando justificar, por exemplo, a violência doméstica, ou deslizes morais e legais, afinal, “ele não presta, mas é trabalhador”. Entretanto, devemos questionar essa visão.
A Internet e aceleração do tempo
Se antes o excesso de trabalho estava restrito ao ambiente físico, hoje a internet aumentou a velocidade com que vivemos. A hiperconectividade nos mantém acessíveis o tempo todo, nos bombardeando com informações, exigências, padrões e tarefas que tornam o descanso ainda mais desafiador. A cultura da produtividade on-line, alimentada por redes sociais, leva muitas pessoas a sentir que precisam estar “sempre ligadas”, respondendo e-mails fora do horário de trabalho, ou acompanhando as notícias e tendências em tempo real.
Essa aceleração constante gera desgaste emocional profundo. A tecnologia, que deveria facilitar a vida, muitas vezes cria a ilusão de que podemos – e devemos – fazer mais em menos tempo. O resultado? Uma sensação de cansaço mental permanente. A ausência de pausas reais, longe das telas, torna impossível o relaxamento e a recuperação mental. Esse fenômeno agrava problemas psicológicos tornando ainda mais urgente a reflexão sobre o equilíbrio entre trabalho e descanso.
Consequências psicológicas do excesso de trabalho
O excesso de trabalho, combinado com a falta de descanso, tem consequências profundas na saúde mental. O primeiro problema que costuma surgir é a Síndrome de Burnout, uma condição caracterizada por exaustão emocional, física e mental devido ao estresse crônico no trabalho. Pessoas que sofrem de Burnout perdem o interesse e a motivação, tornando-se apáticas, irritáveis e incapazes de continuar desempenhando suas funções de maneira saudável.
Outro problema comum é a ansiedade, que aumenta quando o descanso é constantemente sacrificado para alcançar metas profissionais. A pressão para estar sempre produtivo faz com que o corpo e a mente fiquem em estado constante de alerta, dificultando o relaxamento e o desligamento do trabalho. Além disso, a depressão também pode se desenvolver, à medida que a pessoa se sente sobrecarregada, incapaz de equilibrar o trabalho com a vida pessoal, o que pode levar ao sentimento de desesperança.
A falta de descanso também prejudica o sono, resultando em insônia ou sono de má qualidade, o que agrava ainda mais esses problemas psicológicos. Sem repouso adequado, o cérebro não consegue se regenerar, o que afeta diretamente a memória, o humor e a capacidade de tomar decisões e de lidar com o estresse mantendo uma perspectiva saudável sobre os desafios diários.
Ócio criativo: a importância do equilíbrio
De outro lado, há o conceito de ócio criativo, desenvolvido pelo sociólogo italiano Domenico De Masi. Ele defende que o descanso, o lazer e o tempo livre são fundamentais para o desenvolvimento de novas ideias, e para o crescimento pessoal. De Masi aponta que criatividade e inovação surgem, muitas vezes, em momentos de relaxamento e não quando estamos pressionados ou sobrecarregados. O poeta francês Paul Valéry escreveu que “a tarefa mais difícil é a de se encontrar a si mesmo em meio ao trabalho incessante”, o que nos alerta que o equilíbrio entre o fazer e o ser é essencial para uma vida plena.
Trabalhar é preciso, mas…
É importante deixar claro: o trabalho é necessário, e não estou aqui defendendo a vagabundagem, de jeito nenhum. O que questiono é a exploração e a manipulação por trás da criação de uma moralidade, que associa descanso à preguiça. Fernando Pessoa usou como título de um poema a frase, dita, em 70 a.C., pelo general romano Pompeu: “navegar é preciso, viver não é preciso” para destacar a necessidade de se fazer algo concreto e definido, mesmo que a vida em si seja incerta e imprevisível.
Yuval Harari, historiador e autor de vários best sellers, fala de um paradoxo interessante: precisamos desacelerar, mas com urgência. Ele vê que o ritmo de mudanças tecnológicas e ambientais está tão acelerado que, se não agirmos rápido para frear, podemos nos deparar com crises sérias, como desastres climáticos ou impactos sociais severos decorrentes da inteligência artificial. Então, a ideia é que, mesmo que o caminho seja desacelerar e buscar equilíbrio, essa decisão precisa ser tomada rapidamente para podermos minimizar os efeitos do progresso desenfreado.
Precisamos de tempo para descansar, criar, e sermos nós mesmos. O trabalho é necessário, mas o descanso é essencial para mantermos nossa saúde mental e qualidade de vida. Hoje, podemos parafrasear Pessoa e Pompeu, afirmando que “trabalhar é preciso, mas descansar também é preciso”. Ouça no meu podcast “Psicologia Cotidiana” o mesmo tema com outras reflexões.
*Sergio Manzione é psicólogo clínico, administrador, podcaster, colunista sobre comportamento humano e psicologia no Portal Muita Informação!, e escreveu o livro “Viva Sem Ansiedade – oito caminhos para uma vida feliz”. @psicomanzione
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