A volta da impunidade e da opressão

Quatro anos depois: “Brasil em retrocesso. O sonho acabou?”


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Samuelita Santana* 26/11/2024 08:00 Artigos
A volta da impunidade e da opressão - Acervo pessoal

Em setembro de 2020 escrevi um artigo para a coluna que chamo de Visualidades, publicada em alguns sites de notícias e cujo título fazia a seguinte pergunta: “Brasil em retrocesso. O sonho acabou?” Hoje, quatro anos depois, não sinto qualquer orgulho de confirmar os prognósticos feitos no texto do artigo, que apontava os riscos de derrubada da Lava Jato, com o consequente e desastroso retrocesso que o país sofreria em sua hercúlea e quase quixotesca batalha contra a corrupção e a impunidade. A Operação Lava Jato bateu na jugular de perigosos bandidos figurões, todos envolvidos em bilionários esquemas criminosos e com domínio, controle e capacidade de articular, influenciar e mudar o curso da verdade, em todas as esferas de poder.

aconteceu! O corpo da maior Operação realizada no planeta contra a corrupção sistêmica dentro e fora dos governos Lula/Dilma – cujas relações impuras político-empresariais resultaram na formação de quadrilhas para desviar, lavar dinheiro público, subornar e traficar influências -, acabou brutalmente abatido e esfacelado pelo próprio judiciário brasileiro.

Após 10 anos de investigação, completados em março de 2024, a Força-Tarefa Lava Jato foi aniquilada pelo STF, com o apoio do Executivo e Legislativo, involuindo para um contexto bizarro onde juízes e procuradores que apuravam e combatiam o sistema corrupto da Petrobras; de organismos do governo e braços do Congresso Nacional, passaram de investigadores a investigados, de combatentes do crime a réus. Tudo sob uma saraivada de narrativas criadas para enxovalhar suas imagens, depreciar seus trabalhos e transformá-los em figuras suspeitas, sem legitimidade, usando como argumento anômalas mudanças e interpretações da Lei. Leis que foram readequadas a favor de criminosos.

Todos os empenhados combatentes da corrupção passaram a ser perseguidos, destituídos, afastados de seus cargos e colocados sob suspeição. Exatamente como previ no meu artigo e tal qual ocorreu com os integrantes da chamada operação Mani Pulite (Mãos Limpas), força-tarefa que nos anos 1990 combateu ostensivamente a corrupção sistêmica e estrutural na Itália.

Assim como o ex-procurador da Mãos Limpas, Antonio Di Pietro, sofreu forte pressão da classe política – jurídica – empresarial, com mais de 200 representações e investigações sobre a lisura da sua atuação, o ex-juiz Sérgio Moro foi igualmente massacrado, a despeito das inúmeras provas cabais apresentadas e sustentadas nos processos, das dezenas de confissões dos réus, das revelações categóricas de como funcionava o esquema corrupto, além do desnudamento dos saques aos cofres públicos. A Lava Jato recuperou nada menos que R$ 4,3 bilhões para o erário e mais de R$ 100 milhões, resgatados através dos acordos de leniência. Acordos, aliás, sistematicamente anulados pelo Supremo e o dinheiro voltando ao bolso dos ladrões.

Outra figura emblemática da Lava Jato, o ex- chefe da força-tarefa, Deltan Dallagnol, também perseguido pela própria justiça, teve o mandato de deputado cassado pelo TSE, que por sinal nem ficou vermelho ao ignorar os mais de 344 mil votos que ele conquistou nas eleições de 2022. Dallagnol foi o deputado mais votado do Paraná, numa mostra da irrefutável aprovação popular da sua atuação no combate à corrupção.

A alegação de que o ex-deputado era inelegível porque estaria barrado pela ficha limpa, por ter deixado a carreira de procurador tendo pendentes procedimentos administrativos no Conselho Nacional do Ministério Público, soou patética aos ouvidos da sociedade brasileira. O relator do processo, que abraçou de bom grado a vingança contra Dallagnol, foi nada menos que aquele ministro Benedito Gonçalves, o mesmo que recebeu de Lula tapinhas no rosto, ao estilo ” bom menino” e segredou ao ouvido de Alexandre de Moraes durante a diplomação de Lula: “missão dada é missão cumprida”.

Tanto na Itália, como no Brasil o resultado das duas operações seguiu a mesma trilha. A Mani Pulite serviu de inspiração para a Lava Jato, assim como a reação dos que se sentiram ameaçados com a atuação das duas históricas forças-tarefas. O modus operandi dos inimigos do combate à corrupção foi o mesmo: discurso vitimista, argumentos de que os juízes e procuradores não tinham a devida isenção, invenções interpretativas de legalidade, narrativas orquestradas de exacerbação e ausência de provas.

Tudo isso muito bem articulado, tanto aqui como na Itália, com a grande imprensa, cujo papel seria o de mudar no consciente coletivo a imagem – de positiva para negativa – da força-tarefa. O respaldo da mídia comprada por altos valores de propaganda governamental e isenções fiscais, mostrou-se essencial para os atos jurídicos que se seguiriam.

As robustas e fartas provas foram todas praticamente anuladas pelo Supremo Tribunal Federal, resultando na soltura e na volta de Lula ao poder. Abriu-se então o precedente para outros aliados: dos poderosos irmãos Joesley e Wesley Batista – controladores do grupo J&F, holding que administra a JBS – à Marcelo Odebrecht, do ex-grupo Odebrecht que trocou de nome e hoje se chama Novonor.

Os “bestões”

Para o Supremo, viraram pó as declarações de todos os réus confessos, cujas delações deram detalhes minuciosos de como se dava o esquema corrupto e quem se beneficiava com as propinas. O assombro fica maior quando um dos citados na delação de ser beneficiário das propinas, o ministro Dias Toffoli, anula todas as decisões da Lava Jato contra Marcelo Odebrecht e, de quebra, suspende a multa de R$ 10,3 bilhões da J&F, estabelecida após os irmãos Batista assinarem acordo de leniência e confessarem prática de corrupção.

E agora, cá estamos nós, os brasileiros “bestões”, como diria a deslumbrada primeira-dama Janja, assistindo a indignação explodir em bombas suicidas e contemplando figuras danosas como José Dirceu (PT), ex-ministro dos governos petistas, condenado por crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, receber do STF o presentão da anulação de todas as suas condenações, numa decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes.

Membro da luta armada contra o regime militar, Dirceu tem outras façanhas no curriculum: uma delas, a de articular o pagamento regular de propina para parlamentares aprovarem as pautas do seu partido, no esquema batizado como Mensalão. Antes mesmo do desfecho do Mensalão, Dirceu foi flagrado em outro esquema pela Lava Jato, sob a suspeita de receber pelo menos R$ 15 milhões para negociar contratos superfaturados entre a Petrobras e a empresa Apolo Tubulars, fornecedora de tubos para a estatal, nos anos 2009 a 2012.

Zé Dirceu ficou preso entre 2015 e 2017, perdeu os direitos políticos, foi perdoado pelo ministro supremo Luis Roberto Barroso e passou a responder em liberdade. Agora, agraciado de vez com as bênçãos de Gilmar Mendes Zé, o Dirceu, já se movimenta com desenvoltura nas cenas políticas, se preparando, sem dúvida, para voltar triunfalmente ao poder, tal qual o seu companheiro de jornada, Lula da Silva, após ter sido condenado em três instâncias.

E como o cenário político brasileiro é mesmo esse balaio de raposas e lobos, há os que reverenciem o Zé, por onde circula. Em março deste ano, por exemplo, Dirceu fez uma “festinha” para comemorar seu aniversário em Brasília e entre os convivas – a maioria da casta política -, estava nada menos que o presidente da Câmara, Arthur Lira e até figuras do PL – suposto adversário partidário – como o deputado baiano, João Carlos Bacelar.

Ao fazer da Lei uma ameaça crível aos que cometiam desvios do dinheiro público, a Lava Jato, assim como a Mãos Limpas da Itália, balançou o vespeiro do andar de cima. As ferroadas vieram de todos os lados. O establishment se viu em perigo e nunca antes se tornou tão coeso, com o objetivo de desmoralizar os investigadores e derrubar a maior operação de combate à corrupção da história do país.
Afinal, apesar de inicialmente atingir em cheio o PT e o PP, a investigação da Lava Jato acabou batendo na porta de praticamente todas as legendas do Brasil. Dos 33 partidos existentes, 32 foram investigados, ficando de fora apenas o PSOL. Foi aí que a dicotomia ideológica caiu por terra rapidinho e todos os matizes se uniram. Ninguém soltou a mão de ninguém, incluindo outras esferas de poder, como o judiciário, onde os tentáculos das investigações começavam a mostrar raízes.

Justiça é retidão

Não havia como a Lava Jato, depois de ferir tantos interesses, subsistir a um movimento tão poderoso e a um contra-ataque tão avassalador, que contou com o suporte da velha imprensa no seu vergonhoso papel de depreciar e desacreditar a imagem e atuação dos procuradores e juízes que compunham a força-tarefa. O recado foi dado: “não se atrevam a avançar”. O próprio Ministério Público foi desmantelado, assim como a Polícia Federal, ambos “reajustados” com a entrada de parceiros mais afinados com o projeto em curso, a fim de que a Corte pudesse comandar ações junto à PF, agir à revelia do MP, sem ser provocada, como constitucionalmente deveria ser.

Ao tempo em que o STF anula condenações de praticamente todos os corruptos que pilharam o país, liberando restrições e trazendo-os de volta ao poder, como se o esquema criminoso do Petrolão nunca tivesse existido, segue em contrapartida avançando com força brutal contra os manifestantes do 8 de janeiro de 2023, atropelando atos processuais, negando direitos civis, prendendo antes mesmo da condenação em segunda instância e colocando no mesmo arcabouço jurídico vândalos que destruíram o patrimônio público e cidadãos de bem que protestavam em frente aos quartéis, buscando ingenuamente salvação no Exército.

Mães e pais de família, senhorinhas, senhores idosos, pessoas que nunca cometeram nenhum crime sequer, sendo tratados como criminosos, terroristas, golpistas, acusados e julgados em sigilo, sem os devidos processos legais, sentenciados com severas penas de prisão, aplicadas somente para crimes hediondos, como homicídio qualificado, estupro e ocultação de cadáver. Esta é a “suprema justiça” brasileira alegando defender a democracia, mas vestindo a toga de intocável e personificando-se de forma grotesca de a própria democracia. “Justiça é retidão, é equilíbrio, é balança com pesos exatos” (Bluma Santana).

Nenhuma democracia do mundo utiliza como justificativa a defesa da própria democracia para fazer prevalecer o ataque às liberdades individuais e ao livre pensar, o banimento de opositores e a injunção da hegemonia do pensamento único. Isso é ditadura! É nesse contexto que se há de perguntar porque o governo Lula, que deveria representar o povo democrático brasileiro, defende e se alia a líderes autocráticos e a ditaduras sanguinárias como o Irã, China, Rússia, Nicarágua, Venezuela. Não estamos falando de meras relações diplomáticas, mas de conchavos, visitas escusas, estratégias conjuntas em organismos internacionais, tratativas não reveladas e suporte financeiro, quando o próprio Brasil está à míngua por conta de uma gestão pífia que produziu um rombo nas contas públicas de R$ 105,2 bilhões, apenas no acumulado de 2024. E nem vamos falar aqui da empatia mútua entre Lula e o grupo terrorista Hamas, um fato que assombra o país.

Os fogos de artifício que explodiram em frente ao STF, matando um brasileiro indignado – chamado de “bestão” por Janja, mulher do Presidente da República, numa demonstração da sua total ausência de humanidade, de empatia e respeito ao morto, à sua família e do seu zero grau de competência para a liturgia do título de primeira-dama – podem ser apenas o início das dores ou dos ruídos que virão.
Ou o Brasil se levanta do berço esplêndido para exigir respeito ao contraditório e ao direito de co-existir e ser o que se quiser ser politicamente, seja direita, esquerda, centro, ou conservador – porque, sim, é legítimo, é constitucional, é democrático -, ou continua deitado, submetendo-se a um projeto de domínio e poder, engendrado por egos inflados, mentes autoritárias, vingativas, arrogantes, inebriadas por conceitos retrógrados e capazes de gerar um sistema opressor que não tolera o livre pensar e quer banir tudo o que se lhe opõe.

No triste rastro de todo esse retrocesso e insegurança jurídica, a Suprema Corte poderia – como bem lembrou o brilhante editorial publicado recentemente pela Gazeta do Povo – fixar na entrada da sua sede a inscrição que Dante Alighieri, o poeta florentino, colocou nos portais do inferno: “Abandonai toda a esperança, vós que entrais”.

Essa é a desesperança que cala fundo no sentimento dos brasileiros, ao se perceberem impotentes diante do poderoso consórcio montado para atingir a vida e a imagem de homens honrados, alguns com longa lista de serviços prestados à Nação, criando narrativas maquiavélicas, cinematográficas, sempre com o suporte da velha imprensa rendida, com o intuito de transformá-los em criminosos, golpistas, terroristas, antidemocráticos, planejadores de assassinatos de autoridades. Dá até para ouvir daqui os brados comemorativos dos cárceres: “ Vai todo mundo preso! Foi pro Supremo!

*Samuelita Santana é jornalista



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