Pânico de liberais e progressistas por vitória de Trump é exagerado
Sociólogo e analista de risco político faz análise sobre a vitória de Trump nos Estados Unidos
O dia seguinte à vitória de Donald Trump foi marcado por uma avalanche de jornalistas e analistas políticos, majoritariamente de inclinação progressista, em pânico pelo suposto risco de morte da democracia americana. Razão e temperança são recomendáveis para uma análise menos apaixonada.
A democracia americana mostrou-se forte e vibrante. O dia da eleição transcorreu sem qualquer evento relevante de violência. Até o momento, Trump conta quase 73 milhões de votos, próximo ao que obteve em 2020.
Naquele ano, no entanto, Joe Biden recebeu mais de 81 milhões de votos. Em 2024, Kamala Harris vai obter menos de 70 milhões.
Não é que Trump cresceu. Manteve seu número absoluto, apesar de ter obtido uma diversificação de apoios com o crescimento entre latinos, homens jovens, negros e mulheres, mas o Partido Democrata é que perdeu pelo menos 11 milhões de eleitores em quatro anos.
O partido no poder foi punido pelos cidadãos. Trump ganhou de maneira inquestionável no voto popular e em 30 de 50 estados.
Espanta que muitos que se dizem preocupados com a democracia estejam em choque pelo fato de que o candidato preferido da maioria tenha vencido as eleições e assumirá o poder.
Harris deu uma aula de civismo democrático a Trump: reconheceu rapidamente o resultado, parabenizou o presidente eleito e confirmou que irá cooperar para uma transição pacífica como deve acontecer em um regime democrático. Foi uma alfinetada à atitude autoritária de Trump ao perder a eleição em 2020.
Afirmou também que seguirá lutando pelo que acredita. O lado minoritário na eleição passa a exercer o fundamental papel de oposição.
Esses analistas assustados têm mencionado que Trump terá um poderoso mandato, com menos restrições à sua conduta. Terá maioria no Congresso. Terá ampla imunidade criminal devido à decisão recente da Suprema Corte na qual também já há maioria conservadora. Nomeará menos representantes do establishment partidário tradicional e menos oficiais independentes das forças armadas. Se cercará de bajuladores que obedecerão a ordens de cometer atos ilegais ou atentados à Constituição. Poderá tentar usar as forças armadas contra cidadãos americanos ou para expulsar milhões de imigrantes.
São riscos. Mas poucos estão ressaltando que há muito espaço para oposição e resistência no país. Republicanos ainda dependerão de acordos bipartidários para aprovar legislações e nomeações importantes no Congresso. Duas senadoras negras estarão juntas pela primeira vez na Casa.
Na Câmara Baixa, haverá a primeira deputada trans na história. Vinte estados do país são contundentemente liberais. A Califórnia não se tornará o Afeganistão da noite para o dia.
O direito ao aborto foi aprovado em 7 dos 10 estados em que houve referendo sobre o tema, incluindo estados de maioria republicana. A Constituição não permite terceiro mandato. Trump estará no poder somente por quatro anos.
A sociedade civil seguirá sendo diversa e poderosa, com imprensa, organizações não governamentais e universidades ricas e poderosas mantendo apoio de parte considerável da elite econômica, cultural e intelectual do país.
Finalmente, parte do que um presidente faz, outro pode desfazer em seguida, como Biden o fez ao chegar ao poder.
Em uma democracia, é preciso saber reconhecer quando se é minoria. Aceitar que haverá uma série de políticas com as quais não se concorda, mas que serão executadas legitimamente.
Fazer a oposição cabível. Negociar suavizações das propostas mais radicais, quando possível. Questionar a legalidade, se apropriado. Protestar, quando preciso. Mas tudo isso é parte da dinâmica democrática, não a sua queda.
A democracia é frequentemente uma luta feroz das maiorias para afirmarem sua predominância e fazerem as elites aceitarem as demandas populares.
Às vezes é a esquerda que consegue mobilizar essa maioria, como Hugo Chávez na Venezuela. Outras vezes, é a direita, como Trump agora.
Em meio à insatisfação das massas com as elites, um líder populista pode surgir e desafiar as instituições e sistemas de autoridade, a adesão voluntária e consensual às normas de civilidade, a moderação política, os acordos de cavalheiros, a linguagem polida e a preferência dos líderes políticos do mainstream por negociações de bastidores ao invés de confrontações públicas.
A vitória de Trump coloca a expressão majoritária da democracia em conflito com essas dimensões do liberalismo que amortecem o conflito político.
Mas isso não significa que a democracia americana esteja morrendo. Significa apenas que aqueles que desejam a tranquilidade da política liberal precisam ser convincentes ao defender que esse projeto moderado é bom para a maioria.
Por enquanto, os pensadores da minoria perdedora parecem preferir apostar no desprezo pela maioria que não se curva às suas ideias.
*Felippe Ramos é analista de risco político internacional e Ph.D. em Sociologia pela New School for Social Research de Nova York
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