O ‘Livro dos Cegos’ de Márcio Salgado encanta pela escrita nua
Por Gerson Brasil*
O ‘Livro dos Cegos’, segundo romance de Márcio Salgado, não seria imprudente, como de súbito, ou devido a fadiga, o recolher no livro dos homens, mortos, a viver e aqueles que por certo vão aparecer, com fúria, obstinação e bem pouca decisão racional. O personagem busca algo que nunca teve, mas a falta é muito forte e nem mesmo água apaga. “Muitas vezes a esfreguei no banho, para removê-la, jamais obtive êxito”.
O narrador se entrega a interrogações, constrói uma paisagem de poucos retalhos vividos e a companhia de um livro a ser transcrito do Braile para o português, numa infatigável aventura, sendo que se trata de um relato de assombrosas e ternas audições.
O personagem está ciente de especular “sobre um destino que me escapa. Entre o seu desaparecimento e o momento presente vai um longo tempo de interrogações. Dele recebo respostas vagas, quando não o absoluto silêncio”.
Respostas são difíceis de obter, quer nos pergaminhos ou na escrita de modo geral, ao narrador coube rememorar. “Até onde sei, Madalena partiu numa noite de chuva. Despediu-se do filho com um abraço apertado. Foi breve, como devia ser, do contrário se tornaria drama”.
Nessa passagem, o personagem elide o romanesco, coloca-o na impertinência, esse incômodo do cotidiano, que não se deixa abater, promove festas, algaravia, embala paixões e decisões, vindas, não se sabe de onde, carismáticas, pretensamente justificadas e hão de ser tomadas, quer sejam em busca de deus ou da guerra. Julieta de Shakespeare vive um drama com Romeu que jura seu amor, “pela lua abençoada, que banha em prata as copas abençoadas”. Na resposta, um pedido para reduzir o fervor da declaração e lançá-la no comedimento, atrás da porta e não na vitrine do drama, mas a tendo como honrosa: “não jure pela lua que é inconstante. E muda todo mês, em sua órbita. Pro seu amor não ser também instável”.
Jeremias, o cego que escreveu o livro em braile, de que se serviu o narrador, traduzindo-o para o português, anotou, prudentemente: “ainda bem que existe o depois de amanhã, senão a humanidade estaria perdida”. Não importa quais sejam as decisões e aflições.
A escrita oscila, com o narrador labutando com o texto, de modo a seguir um caminho, que lhe resgate o que não foi vivido, imprimindo no leitor um passeio de carruagem, saboroso como uma pera, no fim de tarde e não uma viagem nesses trens tão velozes, e sempre parados nas estações, porque engolem os trilhos.
Mas “Deutsches Requiem”, de Borges, antes de ser fuzilado, escreveu que todos os fatos que podem ocorrer a um homem foram prefixados por ele. Daí “toda negligência é deliberada, todo encontro casual é um encontro marcado, toda humilhação uma penitência, todo fracasso uma misteriosa vitória, toda morte um suicídio”. Mas a ação não abole a arte.
O romance lida com a falta e as perdas de vidas, silenciadas, a tiros e na tortura e também na recusa do escriturário Bartleby de Melville, diante do patrão. “Prefiro não fazer”. Uma resposta tomada nua, sem os signos e sem as armas; sem ser e sem deixar de ser. E assim foi até a morte. O impacto deixou o ouvinte enlouquecido. “ Senti-me no mais absoluto silêncio durante algum tempo, tentando recompor meu abalado raciocínio”.
Deliberadamente, ou um arranjo, que a sorte conjurou e mais a habilidade, da literatura, com seus quase não e sim e talvez, por demais, ou menos, o leitor é levado de empréstimo a um relato que pouco sabe do que se trata. Toma o leitor como uma testemunha. “Pouco sei desses acontecimentos que se sucederam após o meu ingresso no mundo conflagrado. Tenho comigo versões obscuras embaladas em frases soltas. Desembrulho essas balas de enganar crianças de pouca idade, não encontro respaldo para a história de um ser humano fustigado pela dúvida. Mas aprendi nos livros de filosofia que a verdade não é inacessível, apesar das dificuldades”.
Sarcástico, o defunto Brás Cuba, talvez pela sua condição, viu no leitor um incômodo e fez um alerta, quanto a que estava escrevendo. “ Não se irrite o leitor com esta confissão. Eu bem sei que, para titilar-lhe os nervos da fantasia, devia padecer um grande desespero, derramar algumas lágrimas, e não almoçar. Seria romanesco; mas não seria biográfico. A realidade pura é que eu almocei, como nos demais dias”.
Mas o narrador do “Livro dos Cegos”, presume que as coisas não acontecem com essa consciência. “Vezes seguidas lancei meus protestos no escuro. Madalena sim, havia partido, sem a menor dúvida. Um dia despertei para o mundo ao redor e dei pela sua ausência. Decerto não seria a primeira pessoa a conviver com ela, não estava condenado à morte, há coisas que com as quais a gente se acostuma. No desconforto inventam-se explicações que servem apara acalmar os nervos, embora nem sempre sejam razoáveis”.
Teimoso das dificuldades, de encontrar respostas, o narrador se agarra às crenças que engendram as verdades, ilusórias, até serem substituídas. Na resiliência leva seu projeto adiante na busca de restaurar a falta, que lhe foi imposta, com amor ou com um canivete, ou já estava escrita de antecedência?
Em “A tempestade”, Shakespeare se serviu do aristocrata Próspero, que viu seus inimigos naufragarem, depois de ter lhe aplicado um golpe de estado, para comentar que “nós somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos; nossa vida pequenina é cercada pelo sono”.
A busca empreendida pelo narrador também se assemelha a um sonho, “sigo com essa falta, como meus semelhantes seguem com tantas outras. Seria uma pretensão humana desmedida. Para quê, se elas não fazem sentido”?
Fazer sentido não é uma garantia cartorial, estatutária, ou da pera estar no certo do amadurecimento, e sim ser verissímil, sem importar em ser verdadeiro ou falso, ou ainda a se referir a algo. Alice de Lewis Carroll, ’o País do Espelho’, pergunta ao gato quem realmente estava sonhando, porque para ela era uma questão séria, “ e você não deveria estar lambendo a pata assim”. O gato continuou a lamber a outra pata, fingiu que não tinha escutada a pergunta. Ora, Alice já tinha acordado do sonho e mesmo assim perguntou, quem você acha que sonhou?
Eugênio Montale, em “Osso de Sépia” aconselha-nos a que “não nos peças a fórmula que te possa abrir mundo e sim alguma sílaba torcida e seca com um ramo. Hoje apenas podemos dizer-te o que não somos, o que não queremos sermos”.
Jeremias, o cego, “achou-se muito parecido com Tirésias, uma figura mítica, que viveu trágicos acontecimentos”. Adivinho, também cego, engendrado na peça de Sófocles, Édipo Rei. Mas Jeremias não se sente capaz de traduzir sonhos, fazer adivinhações, ele acumula duas perdas, a da amada e a da visão e tinha certeza de que ninguém era obrigado a levar em considerações coisas de cego, “não se arvorava a juízos precipitados”.
O ‘Livro dos Cegos’ empreende no leitor um passeio e não uma dissertação cautelosa, um passeio estético, uma certa ingenuidade de leitura, que passa pelo homem, onde quer que ele esteja e seja lá qual for a forma. Trata-se de um divertimento com jogos de ideias. Uma escrita nua.
*Gerson Brasil é jornalista e escritor.
O conteúdo dos artigos são de responsabilidade dos autores, não correspondendo à opinião do Portal M!
Mais Lidas
Saúde crônica: um novo paradigma para a promoção da saúde
Turismo e paz
Alfabetização de adultos na perspectiva de transformação social
O que quer a literatura LGBTQIA+ para a infância?
Artigos
Lomanto Júnior – ousadia, operosidade e integridade
A volta da impunidade e da opressão
Alfabetização de adultos na perspectiva de transformação social
O inglês no dia-a-dia: complexo de vira-latas?
Black Friday agora é Black November
Pânico de liberais e progressistas por vitória de Trump é exagerado
O crime compensa?
Retirada dos celulares em sala de aula: avanço ou retrocesso?
Últimas Notícias
Prefeito nega pressão e diz que ‘não há data para definir novo secretariado’
Bruno Reis critica possível chapa do PT para 2026: ‘uma hora o povo cansa’
Disney anuncia fim de canais por assinatura no Brasil; saiba motivo
Júnior Magalhães desconversa sobre saída da Sempre e diz aguardar posicionamento do prefeito
Apesar dos rumores sobre nova função no governo, secretário diz estar focado em concluir sua missão na atual pasta
Fé e Aventura: Turismo religioso e esportivo agitam Salvador, Camaçari e Canavieiras
Programações seguem até próximo domingo, com missas diárias, programações pastorais e competições esportivas
Governo Lula envia PEC ao Congresso com ajustes fiscais e combate a supersalários
Proposta deve ser debatida nas próximas semanas
Erika Hilton será palestrante na Festa Literária de Cajazeiras
Atividades serão realizadas no Ginásio Poliesportivo de Cajazeiras, em Salvador
Arquidiocese de Salvador promove concurso de presépios natalinos
Inscrições são gratuitas e vão até 13 de dezembro; saiba como se inscrever
Policial militar é suspeito de matar jovem e alvejar outro em Salvador; SSP-BA inicia investigação
Crime aconteceu no bairro de Ondina, em Salvador; jovem de 19 anos também foi baleado
Prefeitura de Salvador abre inscrições para organizações no programa de reciclagem
Programa tem como meta fortalecer coleta seletiva, triagem e destinação adequada de resíduos sólidos na capital baiana
Anatel anuncia liberação de sinal 5G em todos municípios do Brasil
Ativação só foi possível devido a retirada total das interferências, causadas pela faixa de frequência de 3,5 gigahertz (GHz)
Taxistas de Salvador podem cobrar Bandeira 2 durante todo o mês de dezembro
Medida está prevista na Lei Municipal 9.283/2017, que regula o serviço de táxi na capital baiana, e entrou em vigor no último domingo
Barbárie Bundi estreia ‘AMÒ’ no TCA em dezembro com homenagem à ancestralidade
Apresentação ritualística destaca criação, transformação e identidade a partir de raízes ancestrais