O inglês no dia-a-dia: complexo de vira-latas?
Presença marcante de palavras em inglês no nosso cotidiano nos faz refletir o porquê tantos termos estrangeiros são adotados
A presença marcante de palavras em inglês no nosso dia-a-dia, das conversas informais a documentos profissionais, nos faz refletir sobre por que tantos termos estrangeiros são adotados, muitas vezes desnecessariamente.
O inglês como símbolo de status e modernidade
O inglês tornou-se um símbolo de status, modernidade e inovação. No mundo dos negócios, ele não só é amplamente utilizado, mas também esperado, sendo visto como a “língua do sucesso”. Termos como feedback, brainstorm e deadline são adotados com frequência, e o uso do inglês se associa a uma imagem de prestígio, profissionalismo e sofisticação. Essa escolha também reflete um desejo de pertencer a um grupo mais avançado e globalmente conectado, mas, na prática, segrega aqueles que não dominam o idioma.
Esse fenômeno também se reflete nas exigências das empresas brasileiras, que cada vez mais demandam o inglês para cargos que, em teoria, não exigiriam esse conhecimento. Mesmo em empresas onde a comunicação se dá quase que exclusivamente em português, o inglês é visto como um diferencial obrigatório para candidatos, reforçando a ideia de que o idioma é um indicativo de competência e potencial profissional. Muitos anúncios de vagas incluem termos como customer service, account manager, business development, e sales representative, exigindo um nível de inglês fluente para áreas que poderiam ser descritas em português.
Além disso, o uso do inglês para nomear negócios e serviços é uma tendência que visa atrair o público com um apelo sofisticado. Muitos são os exemplos. Em vez de “caminhão de comida”, temos food trucks; salões de beleza se transformam em beauty salons; bares descolados são rebatizados como pubs ou lounges; academias se tornam gym ou studios de wellness; pequenos negócios de maquiagem e design de sobrancelhas adotam brow studios, e até padaria já é chamada de bakery, tudo isso para transmitir uma imagem mais moderna e sofisticada ou premium. Esses nomes tentam criar uma percepção de exclusividade, mas acabam, muitas vezes, dificultando a comunicação e afastando clientes.
Algumas raízes históricas e culturais
A elite brasileira historicamente manteve-se num arrogante pedestal de superioridade, fundamentando seu poder em uma visão elitista e racista da sociedade. Autores como Oliveira Viana, e Nina Rodrigues reforçaram a ideia de que o “atraso cultura e moral” e a “inferioridade” brasileira derivava da miscigenação racial. Monteiro Lobato, importante figura literária brasileira, reflete claramente essa visão ao escrever, em 1904, que o Brasil era “filho de pais inferiores” e “incapaz de continuar a se desenvolver” sem o “concurso vivificador” de raças europeias. Ao comparar o brasileiro com indivíduos de etnias “puras” como a alemã e a inglesa, ele explicita uma hierarquia racial, que colocava o brasileiro mestiço em um patamar de menor valor, reforçando a ideia de que a identidade nacional precisava ser “purificada” para alcançar progresso e sofisticação.
Felizmente, para intelectuais como Ariano Suassuna e Gilberto Freyre, a força dos brasileiros está exatamente nas coisas boas que surgiram da união entre diferentes etnias e culturas. Suassuna foi o idealizador do Movimento Armorial, em outubro de 1970, para criar arte erudita a partir de elementos da cultura popular do Nordeste brasileiro, englobado todas as formas de expressões artísticas.
A relação entre Brasil e Estados Unidos da América (EUA) ao longo do século XX é um fator essencial para entender essa preferência linguística. Durante a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria, o Brasil se aproximou dos EUA, absorvendo valores e hábitos culturais americanos. Esse alinhamento teve um marco quando, em 1964, o então embaixador brasileiro em Washington, Juracy Magalhães, declarou: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Essa mentalidade de valorização do que é estrangeiro se sedimentou e, ainda hoje, influencia a forma como vemos o inglês como símbolo de modernidade e status.
Para muitos brasileiros, aprender e adotar o inglês é um símbolo de ascensão social, um elemento de valorização pessoal e profissional. A cultura de consumo, com forte presença de marcas e referências americanas, reforça essa percepção ao promover um ideal de vida aspiracional centrado em padrões externos, desde o estilo de vida e os gostos, até o idioma e os comportamentos.
O complexo de vira-lata e a busca por identidade
A tendência de adotar o inglês reflete o que o jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues, em 1958, chamou de “complexo de vira-lata”: a sensação de inferioridade que nos faz buscar fora aquilo que ignoramos dentro de nós mesmos. Esse complexo nos leva a valorizar o que é estrangeiro – não só a língua, mas o estilo de vida, as preferências culturais e até mesmo as atitudes. Ao preferir o inglês, buscamos algo que sentimos faltar em nossa cultura. Entretanto, essa busca por uma identidade “emprestada” nos afasta de nossas próprias raízes e, muitas vezes, enfraquece a percepção de nossa cultura.
Exemplos do dia a dia
A presença do inglês em nosso cotidiano é tão natural, que usamos palavras estrangeiras até em situações simples, que poderiam ser descritas em português:
• “Precisamos enviar o feedback do brainstorm até o deadline. Depois do job vamos para o happy hour?” (Precisamos dar o retorno da reunião de ideias até o prazo final. Depois do trabalho vamos beber alguma coisa?)
• “Se estourar o budget vou para lay-off” (Se estourar o orçamento, vou ser demitido).
• “Meu crush deu like na minha selfie.” (Minha paquera curtiu minha foto.)
Muitas pessoas usam excessivamente termos em inglês para passar a imagem de alguém moderno, sofisticado e antenado (ou seria só de rico?). Em uma frase como “Passei por um ghosting na minha date, mas fiz um exposed postando um print do direct.”, os estrangeirismos substituem o português sem que questionemos o impacto disso. (Tradução livre: “Fui ignorado no meu encontro, mas coloquei na internet uma captura de tela da conversa do Instagram.”)
Tem coisas que chegam a ser ridículas: vitrines de lojas anunciando 10% Off, em vez de 10% de desconto, ou Sale (à venda), ou Save 20% (economize 20%). Sem contar com o delivery (entrega), e outras tantas aberrações como backstage (bastidores). Enfim, exemplos não faltam.
Medo da exclusão e busca de aceitação
Além do status, o uso do inglês está ligado ao medo de exclusão. Em certos ambientes, especialmente profissionais e acadêmicos, a fluência em inglês ou o uso de seu jargão são vistos como um sinal de competência e atualização. Aqueles que não dominam o idioma, ou não o utilizam, podem se sentir marginalizados, como em uma reunião onde não se entende benchmark ou deadline. No convívio social, a exclusão linguística se torna um critério de segregação e reforça a sensação de inadequação para os que não compartilham desses códigos, levando muitos a adotarem o inglês, mesmo que de forma forçada.
Consequências do uso excessivo do inglês
A adoção indiscriminada do inglês pode trazer consequências para nossa cultura e comunicação:
• Perda da identidade cultural: A riqueza do português, com suas nuances e expressões próprias, é comprometida pelo uso excessivo de estrangeirismos.
• Dificuldade de comunicação: Para quem não está familiarizado, termos em inglês tornam-se uma barreira de entendimento.
• Reforço do complexo de inferioridade: Ao valorizar excessivamente o que vem de fora, enfraquecemos nossas autoestima cultural e identidade.
• Padronização da linguagem: O excesso de estrangeirismos reduz a variedade de expressões, limita a criatividade da comunicação.
Que tal repensar o uso do inglês?
O inglês é uma ferramenta de grande importância para a comunicação global e tem seu valor inegável. No entanto, não deve substituir o português. Valorizar nosso idioma é reconhecer a importância de nossa identidade e cultura, promovendo a diversidade linguística e resistindo à padronização imposta pela globalização. Parece que falar português no Brasil, sua língua oficial, não soa natural. Ao usarmos nossa língua com orgulho e criatividade, contribuímos para um país mais autêntico e culturalmente forte.
Salve Ariano Suassuna, que defendeu a língua portuguesa, a cultura nordestina e muitos outros elementos do Brasil. Para ele, os brasileiros deveriam estudar mais a própria cultura e se orgulhar dela. De fato, os brasileiros precisam pensar mais sobre tudo! Ouça no meu podcast “Psicologia Cotidiana” este tema com outras reflexões.
Sergio Manzione é psicólogo clínico, administrador, podcaster, colunista sobre comportamento humano e psicologia no Portal Muita Informação!, e escreveu o livro “Viva Sem Ansiedade – oito caminhos para uma vida feliz”. @psicomanzione
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