Sílvio Humberto: ‘O principal problema da cidade é enfrentar o racismo’

Vereador foi eleito para o quarto mandato, a partir de 2025, após conquistar 6.904 votos


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Bruno Brito 17/11/2024 09:00 Cidades
Sílvio Humberto: ‘O principal problema da cidade é enfrentar o racismo’ - Divulgação

Em continuidade à série especial do Novembro Negro, o Portal M! conversou com o vereador Sílvio Humberto (PSB), uma das principais figuras na luta pela igualdade racial e pelo fortalecimento das políticas de reparação em Salvador. Economista e educador, Silvio é conhecido pelo trabalho em prol da valorização da cultura afro-brasileira e do combate às desigualdades que afetam a população negra. Ao falar sobre as ações do seu mandato para a causa antirracista, vereador ressaltou que “o principal problema da cidade é enfrentar o racismo e suas diversas manifestações”.

“[Estamos] transformando o nosso mandato numa plataforma de quem luta por igualdade racial para valer. Eu considero que o principal problema dessa cidade é enfrentar o racismo e suas diversas manifestações”, disse.

Silvio Humberto também defendeu que não há saídas individuais no enfrentamento ao racismo e pontuou a necessidade de valorizar o conceito de consciência negra em detrimento da definição do letramento racial. Para o vereador, enquanto houver racismo, não será possível falar em democracia.

Nascido em 27 de fevereiro de 1963 e criado no bairro do Garcia, em Salvador, Sílvio Humberto está em seu terceiro mandato na Câmara Municipal de Salvador (CMS). Ele foi eleito pela primeira vez em 2012, com mais de 4 mil votos, pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Desde então, coloca a sua trajetória de vida e luta, sempre marcada pelo desejo de ajudar as pessoas, à disposição do povo de Salvador. Este ano, Silvio foi reeleito para o quarto mandato, após conquistar 6.904 votos.

Sílvio Humberto é um dos fundadores do Instituto Cultural Steve Biko, organização referência na promoção educacional de jovens negros e negras e que contribuiu para o ingresso de milhares deles nas universidades, quando ainda não havia a política de cotas. Em fevereiro deste ano, assumiu a liderança da bancada de Oposição da Câmara.

O que Sílvio Humberto pensa?

– Vereador, quais têm sido as pautas prioritárias do seu mandato para a causa antirracista?

“A primeira foi ser o relator do Estatuto da Igualdade Racial e Combate à Intolerância religiosa, que foi aprovado nessa legislatura pela Casa. E a outra: eu fiz um projeto de resolução que nos concursos da Câmara, cerca de 30% das vagas sejam reservadas às pessoas que se declararem pretas ou pardas. Isso já existe no Executivo, e eu trouxe isso para o Legislativo. Fora estar apoiando as organizações negras, com sessões especiais, as instituições religiosas de matrizes africanas, que nos solicitam homenagens, apoiando os ícones da luta da igualdade racial. Então, transformando o nosso mandato numa plataforma de quem luta por igualdade racial para valer, que eu considero que o principal problema dessa cidade é enfrentar o racismo e suas diversas manifestações”.

– No cenário atual, fala-se muito em letramento racial. Você concorda que este é o melhor caminho para reduzir o racismo? E de que forma esse letramento pode ser promovido na sociedade?

“Inicialmente, eu tenho uma dificuldade com essa ideia do letramento, que eu acho que se tornou algo palatável para ser absorvido pelo mercado. Eu venho do tempo que era o Dia da Consciência Negra, e foi o Dia da Consciência Negra que gerou a Semana da Consciência Negra, que gerou o mês, que gerou toda essa reverberação e ao falar que o racismo não tira férias. E eu acrescento a isso que é pela consciência negra, essa luta pela consciência, por igualdade para valer, que chega o letramento racial. É importante, mas já que a gente está falando de racismo, ele tem um nível de sofisticação e de brutalidade ao mesmo tempo. Então, essa concepção eu considero que é importante, mas eu prefiro falar que nós fazemos consciência negra para poder despertar nos outros a consciência de pertencimento étnico-racial. Entendo que as pessoas absorvem [o conceito], mas a consciência negra é muito mais ampla do que o letramento racial. Ele pode levar até a um esvaziamento político do sentido que nós estamos trazendo, mas é um meio […], que se tornou quase que um objeto de cursos etc., mas você fala do letramento racial e não fala da consciência negra. Então, foi o debate da consciência negra para deslocar o 13 [de maio, data da assinatura da Lei Áurea] e afirmar o 20 de novembro. Então, tem toda uma história, todo um legado. Eu entendo que o letramento racial é só um meio, mas o debate fundamental para enfrentar o racismo é você falar de enfrentar com o que forma, o que fundamenta a consciência negra, porque foi isso que trouxe a consciência de pertencimento étnico-racial e mostrando que nós não vivemos, infelizmente, uma democracia racial”.

– Conceitos relativamente recentes, como afroturismo, afroempreendedorismo e afrofuturismo, vieram para ficar. Como você avalia essa ocupação de espaços da população negra, agora como protagonista da própria história?

“Será que esse debate é de estar, de fato, sendo protagonista? Os resultados econômicos e financeiros que isso gerou, o Salvador Capital Afro, quem se apropriou economicamente e financeiramente? Os privilégios brancos continuam se apropriando economicamente e financeiramente. Podem ser só termos. Eu acho que você tem que entender esse processo. Por isso que eu entendo que você precisa falar de consciência negra, entender essas nuances do mito da democracia racial. Porque no fundamental é o mesmo que, aparentemente você está avançando, mas está mostrando como se as saídas fossem individuais. E não há saídas individuais no enfrentamento ao racismo. A gente precisa ter essa consciência, […] entender a diferença fundamental: pretos no topo não é sinônimo de pretos no poder. Pretos no poder controlam os pretos que estão no topo. Então, esse discurso de pretos no topo não esvazia o conteúdo político para o enfrentamento do racismo”.

– Qual a sua visão sobre racismo estrutural e como ele se contrapõe à luta antirracista?

“Ao denunciar o caráter estruturante do racismo – e racismos, no plural -, a gente precisa dizer que o racismo tem essa capacidade mutante e mutagênica, ele ora está com a raça, ora ele não precisa da raça, ora ele tem um racismo explícito, ora ele está nas condições objetivas, ora ele está na subjetividade. Então, é preciso entender que não é justamente essa construção antirracista que leva a denunciar que nós vivemos um racismo sistêmico, um racismo estrutural. Mas não é racismo estrutural como também tem sido colocado e ponto, como se aqui encerrou, fim da história. O fato de você denunciar e constatar, e o dia seguinte disso é fazer o quê? Quais são as formas de enfrentamento? Qual é a política? Como é que nós vamos, a partir daí, aumentar a representatividade negra? Não só nos espaços de poder públicos, mas também nos espaços de poder privados. Então, parece que, às vezes, falar do racismo estrutural é botar um ponto porque ele explica tudo e, ao explicar tudo, parece que você não tem nada a fazer”.

– Em quais áreas você considera que há avanços? E o que precisa ser feito de forma emergencial?

“Olha, eu acho que uma área que tem avançado é a da educação. As ações afirmativas são um bom exemplo disso, de que você avança e também, por outro lado, você vê as tentativas de retrocesso. Os casos dos afroconvenientes que utilizam a disputa do mercado de trabalho, seja do espaço público ou privado, que tentam se passar por pessoas negras, usando o eufemismo e dizendo: ‘Olha, é assim’. As pessoas se declaram pardas – eu preciso dizer que existem as cotas para as pessoas negras que se declaram pretas, e as pessoas negras que se declaram pardas. Se você não tiver essa compreensão, você não entende o sentido da política. E aqueles que se dizem antirracistas, que se beneficiam disso, novamente, não querem entender o que está em jogo. Há que se perguntar se você é o objeto da política, se você já foi discriminado pela cor da sua pele, se você não foi, não tem sentido você participar de um concurso e desfrutar de uma sombra que você, em momento algum, buscou plantar essa árvore. Então, eu diria que as ações afirmativas vão impulsionando outras, vão tirando as pessoas de uma certa zona de conforto, e tem um perigo real e concreto de retrocesso. Por isso que [é importante] aumentar a nossa representatividade política nos espaços legislativos e executivos, e continuar o movimento de rua. Nas ruas, na academia, nos terreiros, nas igrejas, em todos os espaços que nós possamos fazer valer que esse país não avançará sem a população negra e indígena. Enquanto houver racismo, a gente não vai poder falar em democracia”.

– A representação da população negra em ambientes de poder, como a política e o mundo empresarial, ainda deixa a desejar. Quais os caminhos para mudar este cenário?

“Eu diria que é você construir políticas públicas com o movimento negro, avaliar as políticas que já estão em curso – às vezes, as políticas estão alcançando o seu objetivo, mas não estão tendo impacto. Há que se perguntar: alcançou o objetivo e isso, de fato, mudou a realidade? Isso é importante também do ponto de vista dos negócios. Se está se perdendo gente, consequentemente você está perdendo dinheiro. Porque quando essa população negra tem o seu poder, só para ficar nessas relações mais simplórias de consumo, tem o seu poder de consumo cerceado porque não tem renda, isso impacta no negócio negativamente. Você olha para Salvador, que não consegue romper o seu ciclo vicioso da pobreza, porque continua a ostentar os privilégios brancos. Basta ver quantos negros estão ganhando com o Capital Afro, que é mais de R$ 350 milhões. Então, se a gente não entende essa engrenagem, está tudo mudando para tudo permanecer como está. É por isso que a representatividade conta e é preciso também uma mudança da cabeça desses gestores. O prefeito [Bruno Reis], por exemplo, agora reeleito, podia entrar para a história para ele colocar 50% de mulheres, 50% de pessoas negras, no mínimo, para compor seu alto escalão, e quando fosse descer para o primeiro, segundo escalão, a diversidade ser parte como um elemento, como um ativo importante para aumentar a legitimidade, aumentar a produtividade. Porque esse é um verdadeiro jogo de ‘ganha ganha’, isso leva até a desconcentrar a renda, mas a visão é muito pequena. É uma visão muito patrimonialista, é uma visão que não tem coragem de romper com o pacto nascido”.

– Recentemente, causou polêmica a suspensão, por decisão judicial, da posse de uma médica negra aprovada pelo sistema de cotas para uma vaga no corpo docente da UFBA, em favor da primeira colocada na ampla concorrência. Como avalia as ações afirmativas e o que pode ser feito para que decisões como esta não virem rotina?

“O que nós observamos é essa tentativa de se manter o conservadorismo racial. Por mais que você avance, você vê o quanto há resistência dentro da Justiça, no entendimento do que é que vem a ser as ações afirmativas. E nesse caso, a Universidade precisa recorrer, porque é preciso se dizer que o entendimento da Universidade: se você tem 10 vagas, 20% dessas vagas precisam ser reservadas às pessoas negras. Como a Universidade vai fazer essa distribuição é uma coisa, mas o que a Justiça terminou fazendo foi criar uma outra vaga, para que a professora negra não perdesse a vaga. E isso resolve ali momentaneamente, porque decisão da Justiça você tem que cumprir quando chega. E aí, a Universidade deve recorrer porque você está entrando no limite da autonomia universitária também. […] A política termina não alcançando seu objetivo. Com uma vaga não tem sentido fazer, não vai ter como aplicar a Lei de Cotas. Então, o que é que se mudou? Você precisa garantir no departamento o número, no mínimo, de 20% de pessoas negras. Quando você fizer um curso, você precisa garantir. Então, essas são as nuances que é preciso entender da política de ações afirmativas, que está sofrendo revés na Justiça, quando os candidatos entram ou quando questionam a prova de heteroidentificação, se autointitulando pardos. E não é você simplesmente ser pardo, porque se for assim, esse racismo da pigmentocracia, essas pessoas têm vantagens na construção do seu percurso acadêmico, do seu percurso formativo, porque vão estudar em boas escolas, podem ter os bons empregos, têm uma família mais estruturada, e quando chega na hora das ações afirmativas, essas pessoas pulam para serem classificadas como cotistas, se beneficiando de uma árvore que elas nunca plantaram absolutamente nada. E, mais uma vez, se valendo dessas armadilhas do mito da democracia racial, já que ele tem uma capacidade enorme de estar constantemente se reinventando”.

– No contexto da sociedade racista, muito se fala nos malefícios à saúde mental e emocional, gerando o adoecimento da população negra. Como você lida com isso?

“Esse é um problema seríssimo, tanto que você tem as especificidades da saúde da população negra. Entender isso, como é que o racismo deixa sequelas, como é que o racismo tira a sua vontade de viver, como é que o racismo te impede de viver, empurra para as drogas, para o álcool e outras drogas… Tem que entender essas especificidades, e daí a importância de ter profissionais negros que tenham essa trajetória, que entendam esse ser, que está ali, que se coloca na frente no seu consultório, com todas as suas nuances. E você, por exemplo, ser um jovem negro, homem negro ou mulher negra, numa sociedade estruturada pelo racismo. Então, esse lugar da saúde mental [é importante], porque eu considero que se o racismo me tira a humanidade, não reconhece em você a sua humanidade, isso vai bater diretamente na sua saúde mental, e você não vai resolver isso com uma visão ou com um entendimento limitado, míope, no sentido de ficar sem entender essas circunstâncias, esses condicionantes sociais que interferem diretamente ou tornam esse indivíduo vulnerável socialmente e mentalmente. Algo é você viver numa sociedade em que a diversidade seja respeitada, outra coisa é você viver numa sociedade marcadamente estruturada pelo racismo que, a todo momento, desde que você acorda, lhe nega. Então, isso é algo que tem adoecido muita gente. Hoje você tem avanços, porque você tem profissionais negros, psicólogos, psiquiatras, terapeutas. A psicologia se abre mais para isso, trabalhar na formação, que não precisa ser só um profissional negro, mas você precisa ter uma formação curricular que dê conta disso. Porque você tem as pessoas indígenas, que passam também por essa mesma coisa. É de fundamental importância, porque se afeta sua autoestima, certamente afeta a sua saúde mental”.

– Por fim, que mensagem você gostaria de deixar neste novembro negro?

“Olha, eu vou usar uma frase que eu usei durante a campanha: ‘Eu luto, tu lutas, e nós vencemos’. E mais: as saídas não serão individuais, as nossas saídas nesse enfrentamento ao racismo, suas mazelas e suas manifestações, elas são sempre coletivas. Isso não nega a sua individualidade, mas se a gente não tiver essa percepção de que as saídas são coletivas, nós certamente vamos confundir pretos no topo com pretos no poder”.

Confira a mensagem de Sílvio Humberto para o Novembro Negro:

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