Líderes autoritários e a busca da figura paterna

Sigmund Freud e Jacques Lacan, dois dos maiores teóricos da psicanálise, consideram a função paterna fundamental para a formação da identidade e para a inserção do indivíduo na sociedade. Freud destaca o papel do pai na estruturação do superego, a instância psíquica responsável pela internalização das normas e leis sociais. Lacan, por sua vez, expande essa visão introduzindo o conceito do “Nome-do-Pai”, que se refere não apenas à figura do pai biológico, mas a um conjunto de normas, valores e leis, que regulam a vida social.

Alienação e a busca por um pai substituto
A alienação, ou o afastamento do indivíduo de sua própria autonomia e capacidade crítica, é frequentemente enraizada em uma função paterna deficitária. No caso de grupos, essa alienação se torna um fenômeno coletivo. Quando a função paterna é mal desempenhada, o grupo, assim como o indivíduo, pode buscar um “pai substituto”, que ofereça segurança e um sentido de pertencimento. Isso pode ser observado em movimentos políticos e religiosos, que se constroem em torno de uma figura carismática.

Por exemplo, a seita do Templo do Povo, liderada por Jim Jones, em que os seguidores viam Jones como um pai espiritual capaz de prover direção, segurança e salvação deste mundo corrompido, resultou em um pacto coletivo de lealdade extrema, que culminou, em 1978, no trágico suicídio em massa de 918 pessoas, incluindo crianças, em Jonestown na Guiana.

Muitos exemplos trágicos da história mostram como essa busca por um líder que ofereça proteção absoluta pode levar à alienação e destruição em massa. Adolf Hitler, na Alemanha nazista, é um exemplo claro de como um líder carismático de extrema-direita pode transformar um país inteiro em uma máquina de guerra e genocídio. Hitler usou o medo, a frustração e o desejo por uma figura paterna forte para manipular milhões. O resultado foi a Segunda Guerra Mundial, que causou a morte de mais de 70 milhões (alguns estimam 85 milhões) de pessoas.

Joseph Stalin, líder ditatorial de extrema-esquerda da extinta União Soviética, foi visto como a figura que traria igualdade e prosperidade, mas sua liderança autoritária resultou em uma das maiores tragédias da história moderna. As políticas de Stalin resultaram na morte de cerca de 20 milhões de pessoas.

Kim Jong-um, na Coreia do Norte, é o líder exaltado como uma figura paternal onipotente, capaz de proteger a nação e garantir a prosperidade, mesmo quando isso contradiz a realidade vivida pela população. A idealização do líder como “pai” protetor mantém o grupo unido em torno de uma crença comum.

Platão e o Mito da Caverna: presos em sombras
Platão (427-347 a.C.), no Mito da Caverna, já nos alertava para esse tipo de comportamento. No mito, Platão descreve um grupo de prisioneiros que passou a vida inteira acorrentado dentro de uma caverna, olhando apenas para uma parede onde sombras são projetadas. Para eles, essas sombras são a única realidade que conhecem. Quando um dos prisioneiros se liberta e descobre o mundo exterior, ele vê a luz do Sol e a realidade como está acontecendo, e que é bem diferente daquela vista através das sombras. Ao voltar para a caverna e tentar contar aos outros, eles o rejeitam, preferindo continuar na ilusão confortável das sombras. Esse mito é uma metáfora perfeita para grupos alienados. Pessoas que seguem cegamente um líder estão presas na caverna, vendo apenas a “realidade” distorcida, que lhes é mostrada como única. Quando alguém tenta mostrar a realidade objetiva, vai ser rotulado, entre outras coisam de traidor. O grupo resiste e prefere conservar suas posições, porque sair da caverna significa abrir mão de suas crenças e se encarar como alienado, portanto, sair é desconfortável e assustador.

Um exemplo contemporâneo é a adesão inquestionável de grupos a teorias da conspiração, como o movimento QAnon nos Estados Unidos, cujos seguidores acreditam em uma série de ideias não comprovadas, sustentadas por promessas de revelações de um “salvador”, que trará justiça e proteção contra forças malignas invisíveis. Esse grupo, assim como os prisioneiros da caverna de Platão, enxerga apenas as sombras da realidade, e permanece alheio a fatos e evidências concretas, se mantendo em um estado de ignorância e alienação. No entanto, afastando a hipótese de sérios comprometimentos na saúde mental, os líderes parecem conhecer bem o lado de fora da caverna, cabendo aos seguidores a alienação.

Fake news e o ciclo de desinformação
Em um ambiente de alienação, as notícias falsas (fake news) servem como combustível para reforçar as crenças distorcidas de um grupo. As pessoas dentro dessa bolha acreditam em qualquer informação que confirme o que já pensam, sem se preocupar em verificar a veracidade. Isso reforça a alienação, cria mais divisão e, muitas vezes, alimenta o ódio.

Em 2021, o Facebook informou que removeu 3,3 bilhões de contas falsas, e 20 milhões de postagens com desinformação em um único trimestre. Isso mostra como o problema de alienação, alimentado por fake news, é enorme e cada vez mais difícil de controlar. Daí, vejo a necessidade de que o ambiente virtual seja regulado e fiscalizado, e as grandes corporações de mídia também sejam responsabilizadas por aquilo que veiculam.

Rompendo o ciclo da alienação
A chave para romper o ciclo de alienação está no questionamento e na reflexão. Em vez de buscar líderes que nos deem respostas prontas, precisamos desenvolver a capacidade de pensar criticamente e tomar decisões por nós mesmos. O verdadeiro “salvador” não está fora, mas dentro de cada um de nós.

Donald Winnicott, pediatra e psicanalista britânico, explicou que para uma criança se desenvolver de forma saudável, ela precisa de um ambiente seguro, mas que permita liberdade para explorar o mundo. O que Winnicott propõe é que o verdadeiro desenvolvimento vem da autonomia, de aprender a lidar com a realidade sem depender de uma figura externa para fornecer todas as respostas. Quando o ambiente é sentido como frágil, ameaçador ou instável, as pessoas podem crescer buscando segurança em figuras de autoridade externas. Assim, o que vemos nos grupos alienados é a busca desesperada por um líder, que promete resolver seus problemas e oferecer estabilidade. Assim como no Mito da Caverna, sair da alienação significa enfrentar a realidade e deixar para trás as sombras confortáveis das nossas ilusões. Não é fácil, mas é o caminho para uma vida mais consciente e livre.

Enfim…
Libertar-se da busca por um “salvador da pátria” é um processo que começa com o questionamento e o desenvolvimento da autonomia. Devemos ser nossos próprios líderes, guiados por uma visão clara da realidade, em vez de seguir cegamente promessas vazias. Para Freud e Lacan, o amadurecimento psíquico ocorre quando o indivíduo reconhece que não existe um pai onipotente capaz de resolver todos os problemas e proteger de todas as frustrações. Platão sugere que a verdadeira libertação só ocorre quando o indivíduo se liberta das correntes, que o prendem às sombras da caverna, e ousa sair para a luz do Sol, símbolo do conhecimento e da verdade.

Afinal, a liberdade está em pensar por si mesmo, não em depender de figuras que manipulam nossos medos e inseguranças.

Ouça no meu podcast “Psicologia Cotidiana” o mesmo tema com outras reflexões.

Sergio Manzione é psicólogo clínico, administrador, podcaster, colunista sobre comportamento humano e psicologia no Portal Muita Informação!, e escreveu o livro “Viva Sem Ansiedade – oito caminhos para uma vida feliz”. @psicomanzione

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