Paulo Rogério Nunes: ‘A criatividade negra está presente na sociedade em vários aspectos’
Confira mensagem em vídeo para o Novembro Negro do autor do livro ‘Oportunidades Invisíveis’ e um dos idealizadores do Festival Afrofuturismo
Em celebração ao Novembro Negro, o Portal M! trará vozes de destaque na luta pela equidade racial. Ao longo deste mês, personalidades de diversas áreas compartilharão suas visões sobre temas essenciais para a valorização da cultura negra e o combate ao racismo estrutural no Brasil. Os entrevistados vão compartilhar suas perspectivas e apontar caminhos para a igualdade racial, trazendo à tona questões sobre representatividade, políticas públicas e enfrentamento ao preconceito.
Nesta primeira matéria, o entrevistado foi Paulo Rogério Nunes, autor do livro Oportunidades Invisíveis, fundador da aceleradora Vale do Dendê, de Salvador, e um dos idealizadores do Festival Afrofuturismo, que é realizado desde 2018, no Centro Histórico da capital. Em 2024, o Festival Afrofuturismo Ano VI será realizado nos dias 29 e 30 de novembro e terá como tema: ‘Adinkras – O código fonte da liberdade’.
Ao M!, Paulo Rogério falou sobre diversos temas, inclusive sobre sua visão do racismo estrutural. Segundo ele, embora a prática seja responsável por “organizar a sociedade”, diversos agentes, como movimentos sociais, intelectuais e empreendedores, estão começando a “desconstruir” essa noção, ao passo em que apresentam para a sociedade que “quanto mais você incluir a população afrodescendente, a população afrodiásporica, afro-brasileira, dentro do processo econômico do Brasil, mais o País vai crescer”.
O que Paulo Rogério Nunes pensa?
Conceitos relativamente recentes, como afroturismo, afroempreendedorismo e afrofuturismo, vieram para ficar. Como você avalia essa ocupação de espaços da população negra, agora como protagonista da própria história?
“Sim, eu acho que a ocupação de espaços é super importante e não apenas ocupação de espaço, mas também a criação de novos espaços. O Brasil é um país que tem uma contribuição histórica importante das pessoas afrodescendentes, que chegaram aqui, infelizmente, em um situação muito ruim, de escravização, subjugados, mas que, com muita resiliência e muita luta, conseguiram também contribuir muito com esse país em vários aspectos, seja na parte cultural, da música, das artes, da dança, mas também em camadas mais profundas, como arquitetura, tecnologia e indústria. A criatividade negra está presente na sociedade em vários aspectos. Então, o que a gente está vendo vivendo nos últimos anos é um reconhecimento desse processo, ainda tímido, mas cada vez mais crescente do poder público e do setor empresarial, e também um protagonismo de agentes culturais criativos, empreendedores, para criar essas novas oportunidades, novos mercados e novos caminhos. Então, no turismo, a criação desse setor, que já foi chamado de turismo étnico e turismo afro, agora chama-se afroturismo, é uma forma de reconhecer que não existe turismo da Bahia sem envolver a cultura negra, e sem atrair um grupo muito importante que são os afro-americanos, os afrodiaspóricos, que querem vir para Bahia e reconhecer aqui na Bahia sua própria história. Se a gente olhar, por exemplo, o empreendedorismo, a maioria dos empreendedores do Brasil, segundo dados do Sebrae, é formado por pessoas pretas ou pardas, mas a gente sabe que ainda em setores específicos, sem investimentos. Mas o reconhecimento desse campo é muito importante. E isso segue em outras áreas, inclusive o próprio futurismo que é a área que eu trabalho particularmente. Temos o festival aqui, que é entender que os estudos sobre tecnologia, inovação, não podem ficar concentradas na mão de uma elite econômica, e precisa ser compartilhada com todo mundo”.
Qual a sua visão sobre racismo estrutural e como ele se contrapõe à luta antirracista?
“O racismo estrutural e o racismo institucional também – que pode ser colocado sob elemento do racismo estrutural – organizam a sociedade. A gente vive em uma sociedade racializada, onde a partir do seu fenótipo, de como você é visto pela sociedade, as oportunidades são maiores ou menores. Então, o fenótipo, o CEP, o histórico familiar, tudo isso, infelizmente, contribui ou não para o sucesso no mundo dos negócios, da educação e outras áreas. Então, o racismo estrutural é algo muito presente na sociedade brasileira e o que nós temos feito nos últimos anos, os movimentos sociais, os intelectuais e os empreendedores, que olham para a diversidade como algo estratégico, estão começando a desconstruir essa noção e apresentar à sociedade que, pelo contrário, quanto mais você incluir a população afrodescendente, a população afrodiásporica, afro-brasileira, dentro do processo econômico do Brasil, mais o país vai crescer. Se gente parar para pensar, o Brasil com tanta desigualdade ainda está entre as dez economias do mundo. Se o país desse oportunidades iguais para pessoas negras, não negros, mulheres, a gente conseguiria estar disputando as primeiras posições com EUA e China. A gente tem tudo para crescer, a gente tem população criativa, biodiversidade, tamanho de país, com proporções continentais, a gente tem o mercado interno muito pujante, então só falta mesmo essa inclusão para que a gente possa ter um país cada vez maior e próspero”.
No âmbito cultural, você considera que há avanços? O que precisa ser feito de forma emergencial?
“O Brasil bebe da cultura negra desde sempre. Se a gente para pensar, os principais símbolos que o país tem, em sua maioria, vieram de contribuição afro. Quem representa a música brasileira no mundo, historicamente, é o samba, e agora mesmo o próprio funk. A música é um exemplo disso, mas também as artes, todos movimentos que nós tivemos no Brasil, beberam dessa fonte afro-brasileira. Então, isso é um fato, e não é só um fenômeno brasileiro, se a gente analisar a Jamaica, com o reggae, toda essa parte musical dos EUA, que o próprio surgimento do rock bebe da origem das igrejas negras, o jazz, o blues. Toda música mundial é um reconhecimento econômico desse protagonismo e dessa criatividade negra. Infelizmente, a gente viu até recentemente, o Batekoo, que nasceu aqui na Bahia e acabou de ser cancelado em São Paulo por falta de apoio. Então, os eventos de cultura negra sofrem muito para conseguir viabilizar seus projetos. Isso é muito problemático, e deveria ser um elemento a ser repensado, porque quanto mais investimento se colocar nessas comunidades, mais o Brasil vai protagonizar o que a gente chama de soft power. Por exemplo, a Coréia do Sul fez um planejamento de 10, 15, 20 anos, para exportar cultura, existem hoje os Doramas, o K-Pop, e a gente pensa que o Brasil tem tudo isso, podendo exportar para o mundo, e é muito tímido, porque a gente não investiu e não investe nessa cultura. Se a gente entender essa cultura estratégica, a gente vai aumentar o nosso capital simbólico, nosso soft power, vai atrair mais turista, vai vender mais filme, moda, música, cultura para o mundo”.
A representação da população negra em ambientes de poder, como a política e o mundo empresarial, ainda deixa a desejar. Quais os caminhos para mudar este cenário?
“Política e economia, historicamente, são áreas que estão muito conectadas, estão dadas as mãos, e por esse desafio da economia ser muito limitado, a gente tem aí a participação também limitada na política, pelo menos do protagonismo político. A gente tem pessoas que tentam, a todo momento, furar essas bolhas partidárias, essas bolhas da estrutura política nacional, mas é muito complicado. Então, eu vejo com muita tristeza essa dificuldade, de um protagonismo negro também na política e na economia. A gente precisa realmente pensar em um país que tem uma população muito grande de pessoas pretas e pardas, que querem ser representadas. A gente tem aí um grande debate, como o empreendedorismo negro. Esses empreendedores, apesar de serem maioria, têm crédito negado três vezes mais. Isso é um dado histórico, dado objetivo de pesquisa, então como é que os bancos de fomento, como que as agências governamentais podem criar linhas para que essa assimetria seja menor? Como as estatais podem, cada vez mais, ajudar esses empreendedores a crescer? Esses são debates que passam ainda entrelaçados com a política e a economia. A gente precisa, ao invés desse ciclo vicioso, virar um ciclo virtuoso, onde a gente tem a participação da diversidade no protagonismo nacional”.
Recentemente, causou polêmica a suspensão, por decisão judicial, da posse de uma médica negra aprovada pelo sistema de cotas para uma vaga no corpo docente da UFBA, em favor da primeira colocada na ampla concorrência. Como avalia as ações afirmativas e o que pode ser feito para que decisões como esta não virem rotina?
“Esse é um debate complexo. Infelizmente, quando você cria um mecanismo que tem um objetivo importante de restituir a população que, historicamente, foi discriminada, algumas pessoas, sem fazer uma leitura de sociedade, terminam tentando burlar esse sistema. Então, a gente vê muitas fraudes em debate nos últimos anos. No caso da fraude das cotas, fizeram com que fosse criado um outro mecanismo de verificação para tentar reparar essa situação. Eu vejo com muita preocupação e acho que isso tem que ser discutido pela imprensa e pela sociedade, de modo geral. O ideal é que as pessoas que não tem o fenótipo negro nem tentassem usar essas vagas, e que as pessoas que possuem esse fenótipo fossem avaliados da melhor forma. É um debate que precisa ser feito com mais cautela e mais participação social”.
No contexto da sociedade racista, muito se fala nos malefícios à saúde mental e emocional, gerando o adoecimento da população negra. Como você lida com isso?
“É um tema muito importante, porque tem o peso que todo mundo carrega na sociedade contemporânea, que é chamada por alguns autores como sociedade do cansaço, onde está todo mundo correndo e ao mesmo tempo nas redes sociais, pegando transporte por três horas para chegar em casa. Então, nossa sociedade está muito cansada, e se você adicionar a isso uma camada do racismo, esse cansaço é multiplicado por várias vezes. As pessoas negras no Brasil têm o peso, além de tudo, da pressão econômica, do salário que já é limitado, do transporte, da violência urbana que também está conectado com o racismo. Tem esse peso de estar andando na rua, no shopping, ser seguido por segurança, de às vezes querer sair de uma maneira mais descontraída na rua, sem se preocupar em como vai ser percebido pelas forças do Estado, e isso é uma coisa muito ruim e que adoece mesmo. Nos últimos anos, tem sido fortalecido o trabalho de psicólogos, psicanalistas, terapeutas, para trabalhar essa questão da saúde mental da população negra. Eu acho que isso é um movimento importante para que as próximas gerações possam já crescer mais emocionalmente preparadas para os desafios que, infelizmente, ainda vão perpetuar por alguns anos, que está nas microagressões, e que às vezes nem são divulgadas”.
O que é o Festival Afrofuturismo?
“É um evento que trabalha com futurismo, inovação e tecnologia. Somos o maior festival hoje do Brasil e da América Latina de inovação e diversidade. A gente faz um evento muito bacana para 8 mil pessoas, no Centro Histórico, ocupando várias casas temáticas, levando a possibilidade das pessoas refletirem sobre tecnologia, blockchain, inteligência artificial, internet das coisas, game, indústria 4.0, assuntos que são, às vezes, muito sofisticados e fechados em alguns grupos, e a gente possibilita que pessoas comuns tenham acesso à discussão. É um evento bacana para mim, que trabalho com futurismo, inovação e, recentemente, até tive o privilégio de ser reconhecido como um dos futuristas de origem africana mais importantes do mundo. Fiquei muito feliz de trazer esse prêmio, esse reconhecimento para a Bahia, e justamente por isso, eu tento trazer no festival essa rede de colegas e pessoas que trabalham com esses temas, para que eles possam compartilhar. Tem uma frase que eu gosto muito, que diz que o ‘futuro já está entre nós, só não está sendo devidamente distribuído’, do William Gibson. As tecnologias estão entre a gente, a realidade aumentada, realidade virtual, os algoritmos, as inteligências artificiais. Mas o problema é quem produz isso, quem se beneficia disso, e se as crianças da periferia estão se preparando para esse mundo que está entre nós, extremamente conectado. O Festival Afrofuturismo é isso, essa janela, esse portal. A gente transforma o Pelourinho em uma cidade afrofuturista nas 48 horas do evento, possibilitando que as pessoas acessem o que há de mais inovador em tecnologia no mundo”.
Como atua a aceleradora Vale do Dendê?
“É uma aceleradora e também um hub de inovação. A gente tem três unidades físicas, uma no Pelourinho, uma na Estação da Lapa, e uma em Cabo Verde, na África. Basicamente, a gente acelera empreendedores, na sua maioria empreendedores da periferia, mulheres afrodescendentes, que querem crescer economicamente, querem se conectar, querem expor seus produtos ou serviços. Então, a gente ajuda eles nessa jornada empreendedora, que é difícil. Já é difícil ser empreendedor de qualquer forma no Brasil, por conta da burocracia, carga tributária, dificuldade de acessar crédito. Se você é uma mulher negra da periferia, essa dificuldade é potencializada muitas vezes. Então, o que a gente tenta fazer é quebrar esse ciclo de barreiras e possibilitar que elas possam acessar pequenos investimentos, acessar mentorias, conseguir conectar com investidores e, sobretudo, acreditarem que podem sonhar mais alto”.
Por fim, que mensagem você gostaria de deixar neste Novembro Negro?
“Eu acho que o Novembro Negro é um mês de reflexão sobre a situação atual dos afrodescendentes no Brasil. É o momento de refletir sobre o legado de Zumbi dos Palmares, Dandara, das mulheres e homens líderes de todo o país que, historicamente, lutaram por dias melhores. E a minha perspectiva como uma pessoa que trabalha com futurismo, é pensar o que seriam os próximos 30, 50 anos. Então, espero que no Novembro Negro de 2044, a gente esteja olhando para um país muito mais inclusivo, diverso na economia, na tecnologia, e um país que se projeta para o mundo de maneira altiva e projetando a imagem de um Brasil multicultural. Afinal, o Brasil é um país multicultural e precisa mostrar essa cara para o mundo. E isso só vai acontecer quando nós investirmos nos segmentos que, historicamente, foram discriminados nas favelas, nos guetos. Acho que o Novembro Negro é um momento de pensar esse futuro também”.
Confira a mensagem de Paulo Rogério para o Novembro Negro:
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