O impacto das fake news: o simbólico e o diabólico na era digital
Psicológico explana sobre perigos das informações falsas nas redes sociais atualmente
Sergio Manzione*
No mundo contemporâneo, moldado pelas novas tecnologias de comunicação, vivemos em uma realidade onde o simbólico e o diabólico se entrelaçam de maneira complexa e perigosa. O simbólico, que representa a criação de significado e coesão social, é constantemente desafiado pelo diabólico, que busca a desconstrução e o caos. Para entender essa dinâmica, é importante considerar as contribuições de pensadores como Umberto Eco, Joseph Goebbels, Marshall McLuhan, Hannah Arendt e Zygmunt Bauman.
A criação de significados coletivos e identidade
O termo “simbólico” deriva do grego “symbolon”, que significa “signo” ou “marca de reconhecimento”. Originalmente, “symbolon” referia-se a um objeto partido em duas partes, entregue a pessoas diferentes, que poderiam se reconhecer ao unir as partes para formar um todo. Assim, o simbólico carrega a ideia de união, integração e criação de significados compartilhados que conectam as pessoas e dão sentido à realidade.
É através de símbolos, seja na forma de palavras, imagens ou rituais, que organizamos nossas percepções do mundo e atribuímos significado à nossa existência. Os símbolos têm o poder de unificar, inspirar e construir identidades coletivas e individuais, e, por isso, são o alicerce sobre o qual culturas, crenças e valores são edificados.
No entanto, com o advento da internet e das redes sociais, a produção e disseminação de símbolos se tornaram descentralizadas, colocando em risco a coesão social que os símbolos tradicionais costumavam promover. A ausência de filtros críticos nas novas mídias permite que símbolos distorcidos ou manipulados se espalhem rapidamente, desafiando as narrativas estabelecidas e criando divisões.
A força da destruição e do caos
O termo “diabólico” tem origem no grego “diabolos”, que significa “aquele que divide” ou “caluniador”. A palavra é composta por “dia-”, que indica separação ou divisão, e “ballein”, que significa “lançar”. Portanto, o diabólico se refere a algo que divide, desagrega e implanta a dúvida, frequentemente semeando desconfiança e incerteza.
O diabólico, no contexto psicológico e social, é aquilo que rompe as conexões, desagrega o coletivo e semeia a desordem. No ambiente digital, ele se manifesta de forma contundente através das “fake news” (notícias falsas), boatos e desinformação, elementos esses que se aproveitam do poder destrutivo do diabólico para corroer a confiança nas instituições, minar a coesão social e alimentar o medo e a insegurança.
Observação: Neste artigo, o termo “diabólico” é usado em uma conotação mais ampla do que a religiosa. Aqui, ele se refere a forças destrutivas e desagregadoras que desestruturam o tecido social, sem necessariamente carregar um significado espiritual ou sobrenatural.
De outro lado, no contexto da comunicação digital, o diabólico se manifesta através da desinformação e das teorias da conspiração. Essas forças corroem a confiança nas instituições, alimentam o medo e a insegurança, e minam a coesão social. A ideia do psicopata, e poderoso ministro da propaganda nazista, Joseph Goebbels, de que “uma mentira repetida muitas vezes se transforma em verdade”, encontra terreno fértil na era digital atual. As redes sociais, com seus algoritmos, que priorizam o conteúdo mais “clicável” e compartilhável, amplificam a repetição de mentiras, tornando-as parte da realidade percebida por muitos. O diabólico, portanto, utiliza a própria estrutura dos novos meios de comunicação para promover a desordem.
Enquanto o simbólico constrói e une, o diabólico trabalha para desintegrar e criar caos, frequentemente semeando desconfiança e incerteza.
A correlação entre “fake news” e o diabólico
As “fake news” representam um exemplo claro de como o simbólico pode ser subvertido pelo diabólico. Uma notícia falsa pode ser construída com símbolos poderosos — palavras que ressoam com preconceitos, imagens que evocam emoções fortes — e, ao ser disseminada, se espalha e opera como um vírus, rompendo o tecido social e gerando desinformação e polarização.
Com a internet, todos têm uma plataforma para colocar suas ideias. Aqueles que antes eram limitados pela falta de espaço,ou voz, agora encontram nas redes sociais um megafone para suas opiniões, muitas vezes baseadas em falsas premissas ou em mal-entendidos deliberados para manipular os seguidores. Essa socialização da informação, apesar de suas vantagens, também deu lugar à satisfação doentia de ver o caos se instaurar. Há, em alguns indivíduos, uma perversidade latente que se revela no prazer de destruir, especialmente quando isso pode ser feito anonimamente e sem grandes consequências pessoais.
A ignorância como ferramenta de poder
O italiano Umberto Eco (1932-2016), um dos mais importantes pensadores do século XX, alertou sobre o perigo das redes sociais ao democratizar a comunicação de uma maneira que eliminou os filtros tradicionais. Ele observou que, na era digital, todos têm voz, inclusive aqueles que antes não tinham espaço nas discussões públicas devido à falta de conhecimento ou capacidade crítica. Segundo Eco, essa “invasão dos imbecis” resulta na disseminação de opiniões sem embasamento, que podem ter consequências graves quando atingem um grande público.
Essa nova realidade trouxe à tona uma triste verdade: a ignorância, quando amplificada pela tecnologia, pode se tornar uma ferramenta de poder. Manipuladores que dominam a arte de criar narrativas falsas ou distorcidas sabem que há um público vasto e ávido por confirmar seus próprios vieses, por mais absurdos que possam ser. Para esses manipuladores, o importante não é a verdade, mas o impacto. E, para muitos, o impacto mais gratificante é o que destrói.
A propagação de “fake news” é alimentada por essa sede destrutiva, por esse impulso diabólico de desagregar, de fazer com que o simbólico — aquilo que une, que dá sentido — se fragmente. Para aqueles que sempre se sentiram marginalizados ou sem voz, a internet oferece uma sensação de poder. Porém, esse poder, quando usado para satisfazer egos doentios, egoístas e prepotentes, para criar a dúvida e o mal, e para disseminar desinformação, é profundamente corrosivo.
O meio como mensagem
Marshall McLuhan (1911-1980), filósofo canadense e teórico da comunicação, contribui significativamente para essa discussão com sua famosa máxima “o meio é a mensagem”. McLuhan argumentava que o meio de comunicação em si, mais do que o conteúdo que ele transmite, molda e influencia a sociedade de maneira profunda. Na era digital, isso significa que as características intrínsecas das plataformas como o X (ex-Twitter), Instagram, TikTok, Facebook, YouTube, entre outras — sua instantaneidade, alcance global e falta de mediação crítica — influenciam não apenas o que é comunicado, mas como percebemos e entendemos o mundo.
McLuhan também cunhou o termo “aldeia global”, prevendo que os avanços na comunicação conectariam pessoas de todo o mundo em uma rede interligada. No entanto, ele alertou que essa conectividade também traria riscos, como a possibilidade de amplificação de desinformação e o surgimento de novas formas de controle e manipulação.
A natureza da verdade e da mentira
A filósofa política alemã Hannah Arendt (1906-1975) trouxe contribuições valiosas sobre a relação entre verdade, mentira e poder. Arendt argumentava que o totalitarismo se alimenta da destruição da verdade factual, substituindo-a por uma “realidade fabricada” através da propaganda e da repetição de mentiras. Para Arendt, a verdade factual é um elemento vital da vida pública e política, e sua destruição leva à desorientação e à manipulação das massas.
No contexto atual, a proliferação de “fake news” e teorias da conspiração nas redes sociais pode ser vista como uma extensão das práticas totalitárias que Arendt denunciou. A repetição incessante de falsidades, alimentada pela estrutura dos meios digitais, compromete a capacidade das pessoas de discernir entre o que é real e o que é fabricado, minando assim a base da democracia.
A modernidade líquida
Zygmunt Bauman (1925-2017), sociólogo polonês, introduziu o conceito de “modernidade líquida” para descrever a fluidez e a incerteza que caracterizam a sociedade contemporânea. Bauman argumentava que, na modernidade líquida, as estruturas sociais e as identidades são instáveis e em constante mudança, o que cria um ambiente de insegurança e fragmentação.
No contexto das novas mídias, a modernidade líquida de Bauman se manifesta na volatilidade da informação e na efemeridade das narrativas que circulam “on-line”. As verdades se tornam fluidas, moldadas por tendências momentâneas e pelos impulsos das massas conectadas digitalmente. Essa liquidez facilita a disseminação do diabólico, pois a falta de permanência e estabilidade nas informações dificulta a construção de significados duradouros e coerentes.
Comparação com o filtro das mídias tradicionais
Antes da internet, a difusão de ideias era um processo mais controlado e protegido, mediado por instituições como a imprensa, que, apesar de suas falhas, tinha mecanismos de verificação. As mídias tradicionais, com seus processos de edição e verificação, funcionavam como filtros que protegiam o público de informações sem embasamento. No entanto, na era digital, esse filtro foi substituído por algoritmos que privilegiam o que é mais atraente para gerar mais visualizações e potenciais compradores, independentemente de sua veracidade. Isso dá espaço para que o diabólico ganhe terreno corroendo a confiança do público.
As vozes da ignorância, embora sempre presentes, não tinham o mesmo alcance e poder destrutivo que hoje possuem.Infelizmente a máxima de Goebbels ressurge com força total na era digital.
O desafio de reequilibrar o simbólico e o diabólico
Precisamos encontrar um jeito de equilibrar o simbólico e o diabólico na era digital, que se move à velocidade da luz. Isso significa educar as pessoas com pensamento crítico para que saibam distinguir o verdadeiro e o falso, além de criar regulamentações para limitar a propagação das mentiras. É fundamental criar estruturas sociais que promovam o entendimento e a coesão, sem negar a liberdade de expressãoe o necessário debate público, para, com isso, caminhar na direção do consenso, através do processo dialético.
Vivemos em um tempo em que o diabólico parece estar ganhando, mas se fortalecermos o simbólico, buscando a comunicação honesta e baseada na verdade, podemos restaurar o equilíbrio e construir uma sociedade mais unida e justa para todos. A internet nos deu um poder imenso, mas é nossa responsabilidade decidir como usá-lo — para construir ou para destruir.
*Sergio Manzione é psicólogo clínico, administrador, podcaster, colunista sobre comportamento humano e psicologia no Portal Muita Informação!, e escreveu o livro “Viva Sem Ansiedade – oito caminhos para uma vida feliz”. @psicomanzione
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