Entenda decisão que isenta Lula de devolver relógio e abre precedente que pode favorecer Bolsonaro
Decisão do tribunal sobre presente recebido por Lula em 2005 pode impactar caso de Bolsonaro envolvendo joias sauditas
O Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu, nesta quarta-feira (7), que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) poderá manter um relógio Cartier, avaliado em R$ 60 mil, que recebeu durante uma viagem oficial à França em 2005. Além disso, a decisão estabelece um novo entendimento que pode beneficiar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), atualmente investigado pela Polícia Federal (PF) por envolvimento em um esquema de venda ilegal de joias entregues ao governo brasileiro em viagens oficiais.
Nos últimos anos, o TCU havia adotado uma posição diferente, o que incluiu a determinação de que Bolsonaro entregasse as joias que recebeu como presentes do regime saudita. Contudo, com o novo posicionamento, essa decisão pode ser revista, permitindo que Bolsonaro recupere os bens, segundo a avaliação de um ministro do tribunal ouvido pelo Estadão.
Durante a sessão de quarta-feira, os ministros, em sua maioria, concluíram que não há legislação específica sobre presentes personalíssimos, o que, na visão do TCU, limita sua competência para deliberar sobre quais itens devem ser retidos pelos presidentes da República. O voto do ministro Jorge Oliveira, indicado por Bolsonaro, prevaleceu, sendo apoiado por outros quatro ministros. Essa decisão “anulou” o entendimento de 2016, que estipulava que peças de alto valor, mesmo consideradas itens personalíssimos, deveriam ser incorporadas ao patrimônio da União.
A defesa de Bolsonaro poderá usar o novo entendimento do TCU para argumentar que o ex-presidente tinha direito de manter as joias recebidas em viagens, uma vez que a legislação vigente não é clara sobre o assunto. O acórdão de 2016 havia sido a base para que o TCU exigisse a devolução das peças preciosas revendidas no exterior.
O debate sobre o relógio de Lula foi levado ao TCU após uma representação do deputado federal Ubiratan Sanderson (PL-RS).
Por que Lula ficou com o relógio?
O TCU considerou que Lula pode manter o relógio Cartier por falta de legislação específica que defina quais presentes devem ser considerados personalíssimos e quais devem ser entregues ao patrimônio da União.
O relógio, presenteado a Lula em 2005 pela fabricante francesa Cartier, é feito de ouro branco 18 quilates e prata 750, com uma coroa adornada por uma pedra de safira azul. É uma das peças mais icônicas da marca.
“O princípio da legalidade não pode ser ignorado no caso concreto. No direito sancionatório brasileiro, é claro que não há crime sem uma lei anterior que o defina. Até o momento, não há norma clara no País sobre o recebimento de presentes por presidentes da República”, argumentou o ministro Jorge Oliveira em seu voto.
Por que Bolsonaro teve que devolver joias?
Em 2016, o TCU decidiu que presentes recebidos em agendas e viagens oficiais deveriam ser incorporados ao patrimônio da União, com exceção dos itens de natureza personalíssima. Na ocasião, o ministro Walton Alencar, relator do processo, destacou que presentes de alto valor comercial deveriam permanecer com a União, mesmo que tivessem caráter personalíssimo.
O TCU citou como exemplos de itens personalíssimos “medalhas personalizadas, bonés, camisetas, gravatas, chinelos e perfumes”.
Apesar desse entendimento, Bolsonaro não informou às autoridades federais sobre as joias recebidas durante seu governo, de 2019 a 2022.
No início do mês passado, Bolsonaro e mais 11 pessoas foram indiciados pela PF por envolvimento em um esquema de venda ilegal das joias. A irregularidade foi revelada em março do ano passado, quando auxiliares do ex-presidente tentaram entrar no Brasil sem declarar itens valiosos ao Fisco.
Após a repercussão, o TCU determinou que Bolsonaro devolvesse as joias, argumentando que não eram “itens personalíssimos” e tinham alto valor comercial, devendo, portanto, ser incorporadas ao patrimônio da União. Com o avanço das investigações da PF, foram descobertos indícios de peculato, lavagem de dinheiro e associação criminosa, crimes pelos quais Bolsonaro pode pegar de 10 a 30 anos de prisão.
Desde a conclusão do inquérito, a defesa de Bolsonaro tem tentado associar o caso das joias ao do relógio Cartier de Lula. Na última sexta-feira, 2, os advogados de Bolsonaro solicitaram à Procuradoria-Geral da República (PGR) o arquivamento do caso das joias no Supremo Tribunal Federal (STF), alegando que a situação dele deveria ser tratada de forma semelhante à de Lula.
Por que o entendimento pode favorecer Bolsonaro?
Com a anulação do acórdão de 2016, Bolsonaro poderá citar a recente decisão do TCU para argumentar que não cometeu ilegalidades ao manter e vender as joias no exterior.
A defesa do ex-presidente poderá sustentar que a própria Corte de Contas, que no ano passado mandou ele devolver as joias, agora reconhece que não há base legal clara para definir quais itens personalíssimos podem ser mantidos pelos presidentes.
“Foi uma decisão acertada, e vamos utilizá-la sim na defesa de Bolsonaro no caso das joias. Não há legislação específica, e o TCU estava legislando, como bem apontou o ministro Jorge Oliveira”, afirmou o advogado Paulo da Cunha Bueno, representante do ex-presidente, em conversa com o Estadão após a sessão do TCU desta quarta-feira.
Qual é a diferença dos dois casos?
Na decisão desta quarta-feira, o TCU determinou que o entendimento de 2016 não é válido e que o Congresso Nacional precisa legislar para definir quais são os itens personalíssimos e qual o limite de valor comercial.
Dessa forma, Lula não tem a obrigação de devolver os presentes que recebeu entre 2003 e 2010, e Bolsonaro pode argumentar que também não tinha obrigação de reincorporar as joias ao patrimônio da União.
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