ARTIGO: A humanidade e o medo da vida*

Por Claudia Correia*
26/04/2020 às 08h20
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Foto: Divulgação
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Em pleno processo de luto após duas recentes perdas afetivas significativas, hoje tenho muito mais medo da vida do que da morte. Sinceramente temo muito mais esse modelo de vida que a humanidade vem construindo: individualista, egocêntrico, de exploração e que gera profundas desigualdades de classes, raças e gêneros.
 
Lembro-me das fortes imagens na mídia de povos refugiados em busca de abrigo e de muros e cercas construídas na Europa para evitar a imigração, de navios e náufragos, de crianças "sequestradas" de famílias que tentavam entrar nos Estados Unidos. Agora esses países poderosos lutam para barrar a disseminação de um vírus letal que circula em todos os continentes sem passaporte e sem licença imigratória oficial. 

Esse estilo de vida competitivo, que exclui, discrimina os "diferentes", destrói o meio ambiente, não permite a todos condições dignas de trabalho, de acesso aos direitos sociais, aos serviços de saúde é como uma pandemia. Ele oferece um risco que ameaça as sociedades no mundo contemporâneo, onde o direito à segurança nos cuidados com a saúde é transformado em inimigo do desenvolvimento econômico. 

Fiquei chocada de ver laboratórios privados fazendo venda antecipada da vacina contra a gripe por R$140 e alguns postos de saúde sem vacina, ou filas de até 2 horas de espera no drive thru para imunizar idosos. A realidade em muitos países, incluindo o Brasil, desgovernado por insanos que opõem Ciência e Política, é que não temos teste do coronavírus para todos, não há leitos suficientes, sequer vagas em cemitérios. Vi uma reportagem recente sobre fraudes na contratação de espaços para montar hospitais de campana no Rio de Janeiro.

E assim a pandemia vai desnudando a hipócrita publicidade dos governos, omissos com as demandas de uma Política Pública de Assistência Social e de uma Saúde Pública de qualidade, investindo parcos recursos nas universidades públicas e fortunas em festas e maquiagens na paisagem urbana. 

Os riscos de contágio atingem muito mais os que não podem atender ao clamor do "fique em casa" simplesmente porque não têm para onde ir, os que já sobrevivem sem acesso água, esgotamento sanitário e alimentação, os que vivem do que produzem. Observamos o crescimento dos índices de violência doméstica particularmente contra as mulheres, sendo as negras as mais atingidas, o abandono de idosos, os conflitos familiares envolvendo a comunidade LGBT, o abusivo preço de alimentos e a guerra para obter máscaras ou o proibitivo álcool gel.

Que discurso perverso é esse que hierarquiza a vida de idosos e jovens, num julgamento descabido sobre quem "merece" viver, já que o custo no tratamento de ambos se equivale, mas o jovem "tem um futuro pela frente"? Senhor Ministro da Saúde, e, no passado, quem construiu o presente não merece ser tratado e sobreviver? É com essa estratégia genocida que o governo brasileiro quer recuperar o falacioso déficit da Previdência, exterminando os idosos?  

Como os tidos heróis, aplaudidos das janelas das casas, podem trabalhar sem equipamentos de proteção individual, estrutura material, treinamento e repouso para toda a equipe interdisciplinar de saúde?

A pandemia da Covid-19 sacode os valores sociais, coloca em xeque as gestões públicas em todas as esferas de governo no século XXI, na era das tecnologias da comunicação e da globalização econômica. A cada dia, ela denuncia a falência de um modelo de desenvolvimento socioeconômico que segrega, explora, mata e expõe a deficiência das políticas públicas. A boa notícia são as ações de solidariedade comunitária, a empatia com organizações que assistem pessoas com câncer e outras doenças graves, idosos, pessoas em situação de rua.

Nós assistentes sociais sabemos bem quem mais vai perder o emprego e a vida e quem vai perder lucros, a conta bancária das empresas, num cenário de alta concentração de renda, de riqueza mal distribuída e de grandes fortunas intocáveis pela política tributária.

Olhando da janela de minha casa, uma paisagem urbana silenciosa me faz refletir sobre esse medo da morte que se alastra por trás das necessárias máscaras e do distanciamento social previdente. Talvez nunca estivemos tão próximos da nossa humanidade íntima e coletiva. Eu sei que não estamos no mesmo barco porque alguns não conseguiram sequer vaga para embarcar e lutam sem muitos recursos para não morrerem na praia como alguns refugiados. 

Temo mais a vida que levamos já fechados em nossos espaços supostamente seguros, com status social e vaidade. Sigamos em frente, em defesa do direito à vida digna para todos e nos preparemos para o dia em que partiremos daqui, para onde viemos de passagem, para a verdadeira VIDA, mas que esse processo seja com paz e despedida afetuosa da família e dos amigos.

* Claudia Correia - Assistente social, jornalista, Mestre em Planejamento Urbano
ccorreia6@yahoo.cAom.br