Artigo: Fevereiros, Alquimia e Maria Bethânia: muito além do cantar

Por Ícaro Mota Oliveira*
25/03/2021 às 08h00
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Foto: Divulgação
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Cantora. Compositora. Poetisa brasileira. Natural de Santo Amaro da Purificação (BA), Maria Bethânia, em 1965, chegou ao Rio de Janeiro - em plena formosura dos teus 17 anos - para substituir a cantora Nara Leão no espetáculo Opinião. A partir daquele ano, a vida da filha de D. Canô não foi mais a mesma, quando subiu aos palcos e interpretou "Carcará", música que exalta a coragem e a determinação para vencer a fome e a aridez do sertão nordestino. E, para culminar, incluía a declamação de um texto, extraído de um relatório da SUDENE, sobre a migração dos nordestinos expulsos de suas terras pelas intempéries e vulnerabilidade.

Do mesmo modo que diz na canção de protesto: "Carcará/Lá no sertão/É um bicho que avoa que nem avião...", a nossa Maricotinha decolou feito foguete para o espaço sideral. Sendo consagrada como a maior intérprete da Música Popular Brasileira. Foi também feito foguete que ela costuma conduzir a "Rani Baby" (a moto, como era chamada carinhosamente. Ah! Este nome foi oriundo da música Vapor Barato, da Gal.) pelas ruas cariocas. Entretanto, a vida do tipo "racer", foi interrompida a pedidos da Mãe Menininha do Gantois (filha de Oxum, foi a mais famosa ialorixá da Bahia e uma das mais admiradas mães-de-santo do país.)  Bethânia obedeceu! Doou a motocicleta a um dos teus sobrinhos.

Número 13. Para uns, sorte. Para outros, azar. E para a Menina dos Olhos de Oyá? Bem, no dia 13 de fevereiro (1965) que ela fez teu primeiro show. Fevereiro para alguns é alegria, é carnaval. Para a Maricota, o mês de fevereiro é celebração. Comemorar em tua terra natal junto ao teu povo, 2 de fevereiro dia de fes-te-jar, dia de Iemanjá, dia de Nossa Senhora. Ressalta-se que, foi em fevereiro em 2016 que a escola de samba Mangueira homenageou a ilustre cidadã santo-amarense, sagrando-se campeã, depois de 13 anos "em jejum". Por cúmulo, fevereiros são agraciados e de uma significância que transcende quaisquer explicações da mesma maneira que o número 13. No mês passado, comemorou-se 56 fevereiros de pura maestria em tua existência sobre os palcos. Neles, ela cresce, triplica de tamanho: torna-se "a chuva que lança a areia do Saara sobre os automóveis de Roma", é a "sereia que dança, a destemida Iara, água e folha da Amazônia"; é voraz, inebriante, declama e (en)canta. 

Sobre teus cantos e declamações, há um acervo inesgotável, sendo fonte de prazer e ensinamentos. Dificilmente, escolher uma aqui, outra lá, são canções que marcam e embalam momentos de nossas vidas, nossas façanhas, e quiçá aventuras e dissabores amorosos. Canções de protesto, encantarias, poemas, recitais. Teu show é um grande espetáculo. A irmã de Caetano utiliza de elementos gramaticais no tempo e encaixe certeiros, algo além da sintaxe e metonímia; mostra-nos que o sagrado é presente, vive em nós; mostra-nos que é como a haste fina, que qualquer brisa verga, mas nenhuma espada corta. Afinal, tem o terço de Fátima e o colar de Gandhi cruzados em teu peito. 

Há canções e há momentos que eu não sei como explicar, em que a voz é o instrumento que só ela pode controlar, influenciar, misturar tudo e todos, fazer-nos refletir e observar o cotidiano: o justo. São inúmeras! Posso dizer que, essa doce bárbara é alquimia! Sim! Alquimia que possui em tuas vertentes, voz, atitudes, vieses e nas músicas. 

Exatamente quando, onde e como surgiu a alquimia é algo que os historiadores não conseguiram determinar com precisão. Contudo, os indícios históricos disponíveis apontam para um surgimento árabe, egípcio, com a origem do vocábulo alquimia sendo associada à palavra "el-kimyã" (curiosidade: era o antigo nome dado ao Egito). A alquimia foi praticada, sobretudo, na Grécia, China e Egito, expandindo-se para o Ocidente a partir do declínio do Império Romano (atente-se: estamos falando de 395 d.C.). Pela ótica da alquimia antiga, os quatros elementos principais da matéria; Fogo, Terra, Ar e Água, fazem parte da natureza de todo ser humano assim como fazem parte, também, do oásis de Bethânia. Sim, dela mesma! Deixa-me detalhar. 

Dia desses eu estava imaginando (leia-se, analisando), deitado e no leve balanço da rede, algumas encantarias que marcaram profundamente o meu ser e meu gosto musical - forjado ali, naquele tempo, onde as coisas se firmam, descansam em algum canto da alma e vez por outra, desadormecem. Ao ouvir a interpretação de Pedrinha Miudinha, percebi que ali continha "elementos" que poderiam ser trabalhados de modo contextualizado a tal (des)complicada Química, ao menos, desmistificar alguns pontos, e inserir a história da alquimia, o alicerce da Ciência Central. Vejamos no verso: "...Quando eu não era ninguém/Era vento, terra e água/Elementos em amálgama/No coração de Olorum...". Os elementos presentes tais quanto a amálgama e o fogo citado em verso subsequente. 

A amálgama, geralmente, é uma liga metálica de mercúrio com um outro tipo de metal. Podendo ser utilizada em diversas funções, por exemplo, amálgama de estanho usada para espelhar vidro; na odontologia, a amálgama de prata sendo usada em restaurações dentárias. É preciso mensurar que a alquimia atravessou a Idade Média, período em que a instituição religiosa dominante era a Igreja Católica. Na Europa feudal, a religiosidade e a fé católica explicavam os fenômenos naturais e eram a base das visões de mundo (era a detentora de todo conhecimento). Mas durante a Baixa Idade Média, com os renascimentos comercial e urbano (leia-se, o surgimento das polis), ocorre uma grande dinamização nos escambos, "trancos e barrancos". A produção de conhecimento deixava, cada vez mais, de orbitar junto à tutela da Igreja Católica; pessoas e mercadorias circulavam com maior intensidade, e assim também se propagavam muitos saberes, novas teorias. Isso nos ajuda a pensar em um mundo que estava em movimento: a Idade Média se refere à Europa, enquanto outras formas de organização social, cultural e política floresciam na África, nas Américas e no Oriente. Tudo acontecia e acontece ao mesmo tempo! 

À vista disso, a alquimia sobrevive à margem da religião e da filosofia como uma forma de ocultismo, ou seja, uma visão de mundo que buscava o sentido da existência naquilo que não estivesse visível, conferindo a elementos da natureza propriedades sobrenaturais, mágicas, produzindo um entendimento de que a matéria podia ser transformada - já que tudo que existisse derivava da terra, do fogo, da água e do ar. Assim, o trabalho dos alquimistas consistiu em formular um conhecimento sobre as propriedades da matéria, tal como a manipulação e combinação de metais, ao mesmo tempo em que tinham lugar invocações místicas em seus experimentos, desde a trituração, a fixação, a destilação e a coagulação.

Os menos avisados poderiam, talvez, pensar que a alquimia seja apenas uma arte do passado, curiosidade somente de historiadores etc. Contudo, o que se verifica é exatamente o contrário. Não se estuda a ciência, sem antes ler algo sobre a história da filosofia hermética. Apesar das contribuições teóricas, a alquimia difere, significativamente, da Química atual, no tocante aos aspectos da reatividade e, consequentemente, formação de ligações entre os diferentes compostos. Assim, de modo paradoxal, longe de ser apenas uma prática no tempo de outrora, ela constitui-se, mesmo que indiretamente, em uma prática presente em nossa era.

Depois deste breve apanhado histórico, voltemos! Como consequência de suas origens, Bethânia conseguiu despertar em mim, com Pedrinha Miudinha, que eu posso fazer ciência a determinada comunidade.  Entretanto, o quefazer requer a leitura do mundo que precede sempre a leitura da palavra, praticar para aprender e aprender para praticar melhor. Poxa, fazer ciência não é decorar os elementos da tabela periódica, fórmulas, nem ser categórico nas realizações de experimentos sem conhecer a base, o essencial, sem conhecer a alquimia da coisa! Fazer ciência é dar asas à imaginação, é desvirginar terras inexploradas, é ser sujeito e predicado na frase, sem esquecer das vírgulas; é tirar o ego de títulos conquistados para preencher o Lattes, deixar o elitismo acadêmico, o autoritarismo, até porque quem é autoritário esquece a solidariedade!

A "doutrina bethânica" é tão vasta que não poderia ser esgotada neste mero e simplório texto. O que se fez aqui, indubitavelmente, foi escolher aspectos centrais dessa vasta e encantadora história, desta simbiose entre o religioso, a alquimia e a artista, de modo respeitoso e com admiração, fornecendo uma, das muitas narrativas possíveis, podendo ensinar qualquer conteúdo químico ou de outra área correspondente através das tuas músicas: ter, oferecer e criar possibilidades. Escutar e aprender a estudar a notável Veloso transcende qualquer estado de catarse. Senhora de Engenho. Doce Maria Bárbara Bethânia, você toca o coração, eleva pensamentos, estimula a imaginação, ensina religião, ciência, política, verdade, respeito. Com as métricas de Fernando Pessoa e Clarice Lispector, você nos faz mais forte e permite alegria. Contigo, a arte pode fazer de nós pessoas vitoriosas. Que gratificante é viver em estado de poesia inspirado em Vossa Pessoa. 

Muito obrigado. Axé! 

*Ícaro Mota Oliveira
É Doutor em Ciências pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). 
Mestre em Química pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). 
Graduado em Química Licenciatura pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). 
Atua nas áreas de Nanotecnologia, Química de Materiais e Educação Química. 
É divulgador científico, membro colaborador do Ciência Brasileira é de Qualidade (@ciencia.brasileira), do QuiCiência (@quicienciaiqb) (IQB/UFAL), da Usina Ciência da Pró-Reitoria de Extensão (PROEX/UFAL).
É revisor dos periódicos: Revista Docência do Ensino Superior (UFMG) e Revista Brasileira de Meio Ambiente.
Contato: icaro.mio@hotmail.com

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