ARTIGO: Emenda rabilonga

Por Inaldo da Paixão Santos Araújo*
30/10/2020 às 12h00
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Foto: Divulgação
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O Congresso Nacional, nesta 56ª Legislatura, muito tem contribuído para amenizar os nefastos impactos da terrível pandemia que assola a humanidade. Entre outras ações, a aprovação do auxílio de R$ 600,00 foi fundamental para amenizar o sofrimento do já muito sofrido povo brasileiro.

Nada obstante, também merece encômios a promulgação da Emenda Constitucional (EC) nº 108/2020, que tornou permanente o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). Essa EC ainda aumentou escalonadamente a participação da União no Fundo, dos atuais 10% para 23%, em 2026.

O Fundeb, que vigorava desde janeiro de 2007, substituiu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), que existiu de 1997 a 2006. O Fundeb é essencial para a redistribuição dos recursos da educação básica (da creche ao ensino médio), envolvendo investimentos em equipamentos, em reformas, em construções de próprios e em salários, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. 

A proposta originária da Câmara dos Deputados estava restrita a tornar o Fundeb um instrumento permanente de financiamento da educação básica pública e a incluir o planejamento na ordem social.

Assim, torna-se oportuno registrar também a inserção do parágrafo único no art. 193: "O Estado exercerá a função de planejamento das políticas sociais, assegurada, na forma da lei, a participação da sociedade nos processos de formulação, de monitoramento, de controle e de avaliação dessas políticas".


Esse dispositivo, se implementado e regulamentado, muito pode contribuir para o fortalecimento do controle social no nosso país.

Contudo, no âmbito das discussões no Congresso Nacional, outros temas também foram inseridos nessa EC nº 108/2020, tais como o estabelecimento de critérios de distribuição da cota municipal do ICMS e o disciplinamento da disponibilização de dados contábeis pelos entes federados.

A alteração do critério de rateio dos 25% do produto da arrecadação do ICMS pertencente aos municípios também merece aplausos. Essa mudança tende a fortalecer a educação, pois determinar que, dos até 35% que serão distribuídos aos municípios, de acordo com o que dispuser lei estadual, deverá ser "observada, obrigatoriamente, a distribuição de, no mínimo, 10 pontos percentuais com base em indicadores de melhoria nos resultados de aprendizagem e de aumento da equidade, considerado o nível socioeconômico dos educandos".

Igual sorte elogiosa não merecem os legisladores, todavia, ao permitirem a inserção do art. 163-A, com a seguinte redação: "A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disponibilizarão suas informações e dados contábeis, orçamentários e fiscais, conforme periodicidade, formato e sistema estabelecidos pelo órgão central de contabilidade da União, de forma a garantir a rastreabilidade, a comparabilidade e a publicidade dos dados coletados, os quais deverão ser divulgados em meio eletrônico de amplo acesso público".

Até onde este modesto escrevinhador pôde pesquisar, não ficaram claras as razões para inserir no corpo constitucional uma matéria que deveria ter sido objeto de lei complementar. Com efeito, nos termos do art. 165, § 9º, da Carta Maior, caberia a esse tipo de lei: "I - dispor sobre o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a elaboração e a organização do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual; e II - estabelecer normas de gestão financeira e patrimonial da administração direta e indireta, bem como condições para a instituição e funcionamento de fundos".

Além do mais, a Lei Complementar nº 101/2000, denominada Lei de Responsabilidade Fiscal - LRF, ao regulamentar um dos seus pilares, que é o princípio da transparência, já havia definido no seu art. 48, § 2º, que "A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disponibilizarão suas informações e dados contábeis, orçamentários e fiscais conforme periodicidade, formato e sistema estabelecidos pelo órgão central de contabilidade da União, os quais deverão ser divulgados em meio eletrônico de amplo acesso público".

Outro aspecto é que a própria LRF, em seu art. 50, § 2º, combinado com seu artigo 67, já havia também determinado que "A edição de normas gerais para consolidação das contas públicas caberá ao órgão central de contabilidade da União, enquanto não implantado o Conselho de Gestão Fiscal, constituído por representantes de todos os Poderes e esferas de Governo, do Ministério Público e de entidades técnicas representativas da sociedade".

Portanto, a matéria inserida pelo art. 163-A melhor seria tratada em sede de legislação infraconstitucional aprovada após o necessário, rico e amplo debate com todos os atores interessados no âmbito das três esferas de governo.

A falta de clareza, transparência e debate na inserção deste dispositivo completamente díspar ao espírito da EC que tratou do Fundeb não coaduna com os anseios dos novos tempos e muito fez lembrar as não saudosas leis orçamentárias denominadas de rabilongas. Tal Eexpressão foi cunhada pelo jurista baiano Ruy Barbosa, que se referia à prática de se inserir em uma lei específica uma matéria distinta para facilitar a sua aprovação sem a necessária discussão. Essa prática que, em 1922, levou o então presidente Epitácio Pessoa a chamar de "calamidade nacional", e cujo combate fez nascer o princípio da exclusividade orçamentária, sob pena de triste e perigoso retrocesso, não pode e não deve ressurgir.

* Inaldo da Paixão Santos Araújo

Mestre em Contabilidade. Conselheiro-corregedor do Tribunal de Contas do Estado da Bahia, professor, escritor.
inaldo_paixao@hotmail.com

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