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Educadores criticam portaria que permite ‘aprovação em massa’

Especialistas ouvidos pelo Portal M! apontaram uma "falta de diálogo" na construção da medida e possível dano à aprendizagem dos estudantes

Uma portaria editada pelo governo estadual e publicada em 27 de janeiro deste ano tem gerado críticas de diversos educadores baianos, porque visa promover uma “aprovação em massa” na rede estadual, mesmo entre os alunos que não frequentaram as aulas ou não obtiveram êxito em todas as disciplinas. Educadores ouvidos pelo Portal M! apontaram uma “falta de diálogo” na construção da portaria e um possível dano à aprendizagem dos estudantes. 

Na última semana, a APLB – Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado da Bahia fez uma denúncia ao Ministério Público da Bahia (MP-BA) sobre a iniciativa do governo. Segundo a entidade, na tentativa de ampliar o número de aprovados nas escolas da rede estadual, a Secretaria de Educação do Estado (SEC) teria descumprido a própria portaria 190/2024 que editou.

A acusação do sindicato dos professores foi realizada com base em uma pesquisa com respostas de 408 docentes, coordenadores pedagógicos e gestores dos 27 Núcleos Territoriais de Educação do estado. 

Na concepção do sindicato, a portaria incentiva os professores a aprovarem os alunos sem critério. Isso porque o artigo 19 da medida prevê que os estudantes avancem para a série seguinte mesmo se reprovados em até cinco disciplinas.

No entanto, segundo a pesquisa da APLB, 330 profissionais da rede estadual relataram que a SEC aprovou discentes reprovados em mais de cinco componentes curriculares, medida que contraria a própria diretriz do governo estadual. No levantamento, 240 trabalhadores da Educação estadual também disseram que estudantes foram aprovados sem cumprir a exigência mínima de 75% horas de horas letivas, como determina o texto da pasta.

De acordo com o coordenador-geral da APLB, Rui Oliveira, o sindicato tem pedido a revogação da portaria. Conforme o educador, o pleito foi levado à reunião com a titular da SEC, Adelia Pinheiro, na última quarta-feira (21). Há ainda o desejo da publicação de uma “portaria melhorada”, sem nenhum resquício de “promoção automática”. 

“Nessa portaria, você cria a perspectiva de aprovar todo mundo, inclusive quem não frequentou, então é muito ruim. Sem contar que traz uma desvantagem grande, que é a desvantagem dessa aprendizagem, que fica totalmente comprometida. Nós estamos contra a aprovação e a reprovação, nós queremos entender mecanismos que garantam que o aluno possa ser recuperado. Aí você tem diversas ações que podem ser feitas nas escolas públicas, você tem diversas atividades que pode desenvolver, tudo isso no processo para você conseguir garantir isso. Agora você só anula ‘na caneta’, você aprova todo mundo? Nada disso, errado”, apontou. 

Rui também comentou a declaração do governador Jerônimo Rodrigues (PT), afirmando que a escola que reprova é “autoritária e preconceituosa”. A fala do petista ocorreu na última segunda-feira (19), durante evento em Feira de Santana. Para o educador, se trata de uma “contradição”, já que as escolas são “representantes do Estado”.

“Quem é autoritário é o Estado, a escola é a representação física do Estado, não é do professor. É uma fala muito infeliz, e que ele está tentando agora se recuperar, dizendo que não é bem assim.  Nós esperamos um diálogo para que possamos ter um ano letivo mais tranquilo, porque existe uma revolta generalizada dos professores com essa fala e com essa tentativa”, disse Rui.

A tentativa de se recuperar do governador, citada por Rui, refere-se a fala em que Jerônimo admitiu, na terça-feira (20), voltar atrás da portaria 190/2024 se for para ter uma escola “acolhedora e inclusiva”

Na avalição da coordenadora pedagógica Arielma Galvão, a decisão não apenas compromete o ano letivo de 2024, mas também o de 2023, já que seus efeitos estariam retroagindo ao ano passado. Para ela, se trata de um “desrespeito” ao planejamento e aos conselhos de classe que foram realizados pelos educadores em suas unidades escolares. 

“As escolas se reuniram em 2023, fizeram todo o trabalho de avaliação, com base em critérios, com base no regimento interno do Estado, fez todo o movimento de organizar, analisar aluno por aluno, turma por turma, fazer as atas do conselho final, que é um documento oficial da escola, sobre a vida de cada aluno. Daí, os professores e professoras de férias, coordenadores pedagógicos e coordenadoras também de férias, e sai no dia 27 de janeiro a Portaria 190, que retroage a 2023, sem diálogo nenhum com a representação da categoria. Eu considero, como coordenadora pedagógica, uma medida não dialogada, não democrática, não dialogada com quem faz a educação no dia a dia da escola, e infeliz”, criticou. 

Arielma também aponta que a portaria pode ferir a autonomia das escolas, que é quem “melhor conhece seus alunos e alunas”, e enfatizou que a “aprovação automática” já foi promovida aos estudantes.

“Foi o que aconteceu, porque o sistema da própria Secretaria aprovou todos os alunos, até aqueles que foram conservados em mais de cinco componentes curriculares, foram aprovados pelo sistema. Então, alunos que têm demandas de mais de cinco componentes, alunos que não atingiram os 75% mínimo de frequência foram aprovados”, lamentou.

A coordenadora disse não ser a favor de “reprovação em massa ou automática”, e ressaltou querer uma escola “que acolha” e que considere a “diversidade dos alunos”. “A maioria dos nossos alunos é a população negra que historicamente foi atacada em seus direitos. Então, nós lutamos por uma escola de qualidade que emancipe o nosso povo, como diz Paulo Freire, que dê autonomia ao nosso povo. Agora, a gente quer que o aluno progrida com responsabilidade, para que ele tenha, de fato, autonomia, que ele conquiste essa autonomia, que ele possa futuramente fazer um Enem, um concurso, concorrer, de fato, com qualidade”. 

Escolas não observam alunos, avalia pedagoga

A pedagoga e psicanalista Fernanda Menezes disse ter compreendido – na fala do governador Jerônimo Rodrigues sobre as escolas serem “autoritárias” – que estes ambientes não “observam” os alunos como um todo,, mas sim como uma parte “isolada”, considerando apenas suas notas e frequências.

“Eu acredito que a forma que ele se expressou ali traz para nós, enquanto cidadãos, a impressão de que vamos aprovar de qualquer jeito, sem fazer essa avaliação desse aluno, sem compreender o que está acontecendo, simplesmente para que a gente tenha números positivos na mídia. Como pedagoga, me senti até ofendida porque eu também estou em sala de aula e sei como é a luta do professor para passar o conteúdo, para acolher esses alunos, e não é fácil. Então quando ele fala isso na mídia, a impressão que dá é que o professor não está fazendo o seu trabalho e está reprovando de qualquer jeito”, avaliou. 

Em função disso, a especialista defende a necessidade de que os ambientes escolas tenham um “olhar realmente amplo”, apesar de suas lacunas e falhas. “É necessário pararmos para verificar o indivíduo, não somente pela sua competência dos conteúdos que são oferecidos e da frequência, mas como esse aluno está dentro do ambiente escolar”. recomenda.

“Ela [a portaria] traz essas lacunas que podem reforçar, por exemplo, uma dificuldade de aprendizagem de um aluno, um diagnóstico tardio de uma deficiência intelectual, ou até mesmo do acompanhamento desse aluno com relação à família. Então, é necessário a gente convocar o Ministério Público, é necessário o Conselho Tutelar, é necessário a gente ter o apoio de assistentes sociais para que façam a busca ativa desse aluno para saber o motivo pelo qual esse aluno não está frequentando ou esse aluno não está conseguindo obter êxito nas avaliações”, pontua.

Samuel Vida aponta abandono e descaso com a educação pública na Bahia

A portaria também foi alvo de críticas do advogado e professor de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Samuel Vida. Em publicação nas redes sociais, ele apontou um “abandono e descaso” com a educação pública na Bahia, tanto no “âmbito municipal, quanto no âmbito estadual”, e ressaltou que o cenário se torna compreensível pela “lente do racismo institucional”.

“A grosseira manipulação bancada pelo governo petista para melhorar seus escandalosos índices deficitários na educação, após 18 anos de sucessivas gestões, vai desmoronando a cada novo lance. A natureza fraudulenta da medida de aprovação em massa fica demonstrada pelo depoimento de centenas de professores. Parodiando Aimé Césaire, pode-se dizer: ‘A Bahia petista é indefensável'”, afirmou Vida.

O educador também afirmou que as “expectativas por mudanças após a derrota do carlismo” se tornaram um “pesadelo neoliberal e autoritário”, que tem sido responsável por aprofundar “as perversões das antigas oligarquias baianas e produziu um cenário de agravamento do genocídio negro e indígena e a institucionalização das mais agressivas políticas neoliberais que se conhece na América (Afro) Latina”.

“O silêncio cúmplice dos ‘negros bons’ e mansos que integram o MONEGO, dos movimentos sociais cooptados e dos partidos consorciados e coadjuvantes da farsa possibilita o prolongamento da tragédia governamental das gestões petistas e bloqueia o surgimento de alternativas, a pretexto de não permitir o ‘retrocesso’ da retomada do poder pelos neocarlistas”, complementou. 

Professores criticam falta de diálogo e temem danos ao aprendizado 

O professor da rede estadual de ensino, Engeberto Apolinário, afirmou ver de maneira muito negativa a portaria, já que não houve diálogo com a categoria, e apontou a necessidade de se encontrar um meio termo, a partir de negociação entre o Estado, o corpo docente, as entidades sindicais e a própria comunidade escolar. Ele também teme que a portaria promova o “analfabetismo estrutural”. 

“Se você não qualifica o estudante, não fornece a ele competências que são vinculadas a mecanismos conceituais e habilidades – que seriam a aplicação desses conceitos – você tem um fosso, e aumenta, obviamente, o chamado analfabetismo estrutural”, afirmou. 

Outro ponto negativo destacado pelo educador é a ampliação da distância entre a bagagem de conhecimento de estudantes das redes pública e privada.

“Não é passar por passar, mas a escola é construída a partir da dimensão de afetividade, respeito e cuidado com o outro. Então, essas são as principais desvantagens que o estabelecimento dessa portaria de forma arbitrária acaba nos trazendo. Nós precisamos beber da fonte para entender que educação propôs tanto Paulo Freire quanto Darcy Ribeiro, para que nós possamos tomar decisões que dialoguem com isso. Esta escola desestruturada representa uma desvantagem e uma intensificação das chamadas desigualdades sociais”, afirmou. 

Quem também teceu críticas foi o professor da rede estadual Samuel Santos. Segundo ele, a iniciativa causou “indignação” e não possui “nenhuma conexão com a realidade”, já que a “maioria  nunca pisou numa sala de aula da educação básica”.

“Lançando frases de efeito, lançando o pensamento de intelectuais renomados importantes na história do pensamento baiano, brasileiro, como Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira. Sem total conexão com a realidade, eles lançam essas frases de efeito sobre a escola que reprova, pelo contrário, a maioria dos meus colegas, dos meus pares, é contra essa política de reprovação em massa. Só que a questão é muito maior do que isso”, observou. 

Outra queixa do educador foi de que a fala de Jerônimo atribuiria a reprovação na escola à figura do professor. Na avaliação de Samuel, este seria um “desvio de foco” do governo baiano, para temas como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb).

“O Ideb da Bahia é um dos piores do Brasil, do Nordeste. Se compararmos com, por exemplo, o estado do Ceará, que também é governado pelo Partido dos Trabalhadores, eles têm condições muito melhores. Então, a figura do professor sempre fica na frente”. 

O professor também apontou que a medida tem sido responsável por aprovar alunos ‘fantasmas’, que nunca apareceram na unidade escolar, além de episódios de estudantes ridicularizando o ambiente escolar, afirmando, inclusive, que não vão mais frequentar as aulas, já que “todo mundo está sendo aprovado”. 

“A grande questão é que alunos ‘fantasmas’, que nunca apareceram na unidade escolar, estão sendo beneficiados. Está causando uma série de desconfortos, outros alunos ridicularizam, dizem que não vão mais frequentar a escola, porque todo mundo está sendo aprovado. E existe uma preocupação com a qualidade desse ensino. É óbvio que o aluno que frequenta naturalmente se sente desmobilizado”, pontuou. 

Alunos se dividem entre preocupação com aprendizado e memes

Entre os estudantes, existe a preocupação na qualidade do aprendizado, conforme revelou a aluna do 3º ano do ensino médio, Ana Vitória Gomes Paixão, 21 anos. Para ela, é errado garantir a aprovação do estudante sem levar em conta o aprendizado. 

A aluna da rede estadual também relembrou que a SEC tem promovido iniciativas importantes como o Educar para Trabalhar e o Bolsa Presença, mas demonstrou preocupação diante da afirmação de que as escolas que reprovam são “autoritárias” e “preconceituosas”. 

“A secretaria tem se esforçado para garantir a ampliação do conhecimento entre os estudantes e vem apresentando reais avanços. Não chegamos lá, ainda estamos no caminho de uma educação que de fato seja boa e de qualidade, mesmo ela sendo pública. Contudo, os estudantes da rede pública do estado tem sim um diferencial que merece ser considerado. Como estudante, avalio que de certa forma tenha sido mais uma fala infeliz do governador”, ponderou.

Além da preocupação com a aprendizagem, a iniciativa do governo estadual também rendeu memes e uma ‘celebração’ de alguns alunos da rede. Em vídeos no TikTok, estudantes baianos têm comemorado a portaria. Em alguns casos, os alunos afirmam que “não vão estudar mesmo”. 

Foto: Reprodução/TikTok

“Jerônimo decretou que os professores e diretores não podem reprovar os alunos, independente de faltas ou notas. Se nós não estudava, agr que nós não estuda mesmo [SIC]”, diz a legenda de um dos vídeos que viralizou nas redes sociais.

Em outro vídeo, a legenda afirma: “Jerônimo decretou que os professores e diretores não podem reprovar ninguém. Independente de falta e notas, com uma notícia dessa melhorou mais ainda”.

SEC não responde questionamentos

A SEC foi procurada pelo Portal M! para comentar as denúncias dos professores da rede estadual e a respeito da modificação na portaria 190/2024, mas até a publicação desta reportagem não houve retorno. 

 

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