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Samuel Vida afirma que racismo contra Vini Jr. visa “afetar seu desempenho como atleta”

Ao Portal M!, o professor da UFBA também defendeu a importância da criminalização da prática na Espanha

O mais recente caso de racismo contra o craque brasileiro Vinícius Júnior, que joga no Real Madrid, na Espanha, reacendeu a discussão sobre o enfrentamento ao problema. Ao Portal M!, o advogado e professor de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Samuel Vida, avaliou o episódio como um “mecanismo” utilizado pelas torcidas oponentes na tentativa de “afetar” o desempenho do jogador brasileiro como atleta.

“Há evidentemente, uma agudização do desconforto das torcidas oponentes ao Real Madrid pelo excelente desempenho que o Vinicius tem alcançado dentro de campo, ou seja, o racismo específico contra Vinicius está sendo acionado como mecanismo para tentar afetar o seu desempenho como atleta. É uma tentativa de impedir sua atuação profissional, o exercício de um direito, de atuar como atleta”, defendeu

Na avaliação de Vida, é reveladora a forma buscada para “instabilizar e interferir” na atuação de Vinícius, mesmo diante da própria ideia do esporte e da prática do fair play. “É algo que merece nosso repúdio”, pontuou.

Além de professor da UFBA, Samuel Vida é coordenador do Programa Direito e Relações Raciais, fundado em 2003, uma iniciativa pioneira entre as faculdades de Direito do Brasil. Também é mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB, doutorando em Direito, Estado e Constituição pela UnB, e atuou ainda como consultor na elaboração do Estatuto da Igualdade Racial, do Estatuto Estadual da Igualdade Racial e Combate à Intolerância Racial e das Diretrizes para a formulação de Estatutos Municipais da Igualdade.

Para ele, um ponto importante do episódio foi a “atitude corajosa” de Vinícius em denunciar e publicizar o caso, gerando um debate que não diz respeito apenas à agressão individual sofrida pelo jogador brasileiro.

“O episódio traz a oportunidade para a sociedade espanhola e, de certa forma, para as instituições da Espanha, de debater o racismo como um problema latente, vivo e presente naquela sociedade. Além de nos dar uma lição de cidadania, de continuidade de uma trajetória diante das discriminações raciais, que marca toda a história das pessoas negras na modernidade”, ressaltou.

“Em todos os lugares, em todos locais onde há pessoas negras sendo discriminadas, há manifestações reativas, exigindo respeito, dignidade, humanidade e reconhecimento dos direitos. Vinicius escreve mais um capitulo dessa história, com a atitude corajosa que vem tendo”, complementou Vida.

Criminalização do racismo

Na Espanha, diferentemente do Brasil, o racismo não é tratado como um crime específico. No país europeu, a prática é tipificada como “crime de ódio”, um conceito considerado genérico. Diante disso, o professor Samuel Vida defende a necessidade de o racismo ser enfrentado de forma sistêmica.

“O racismo é um fenômeno que precisa ser enfrentado com uma abordagem sistêmica. O racismo se manifesta como um fenômeno sistêmico, não acontece nunca como um caso isolado, ou seja, se um torcedor se sente autorizado a chamar um atleta de ‘macaco’, é porque ele sabe que vai contar com o respaldo de mais torcedores, da imprensa, da liga organizadora. Um episódio de racismo é sempre revelador de um problema que transcende o comportamento individual”, explicou.

Vida, no entanto, ressaltou que a criminalização do racismo é importante, pois “instrumentaliza, do ponto de vista simbólico”, o repúdio moral ao comportamento. O professor também observou que a criminalização deve vir acompanhada de outras ferramentas, a exemplo de aspectos reparatórios na Espanha, visto que o país conta com uma comunidade negra expressiva.

“Então, é significativo que seja considerado crime, que seja objeto de ação penal, que o agressor corra o risco de sofrer uma sanção, mas é insuficiente. É também preciso que outras dimensões jurídicas sejam acionadas para um combate efetivo, e essa dimensão tem vários níveis, desde aspectos reparatórios. Bom lembrar que a Espanha tem uma comunidade negra expressiva, de imigrantes, é um dos pontos de recepção de uma onda de descendente africanos. Além disso, há necessidade de que a Espanha faça um acerto de contas com sua trajetória colonial, já que possui um dívida pelo processo de escravização, invasão e ocupação territorial das Américas”, ressaltou.

Outro ponto destacado pelo professor da UFBA é que, apesar de o Brasil tratar o racismo como crime, o país não pode ser encarado como exemplo. Vida destacou que o que diferencia o Brasil da Espanha, na verdade, é a característica de luta do povo negro.

“O que diferencia o Brasil da Espanha é a característica de luta que se explica pela formação social, através dos quilombos, a capoeira, o samba, as religiões de matriz africana e as organizações negras contemporâneas, que chamamos de movimento negro. Isso dá ao Brasil um tipo de simbolismo que, no contexto de formação social espanhola, não se encontra, não na mesma magnitude”.

O professor também lembrou que o Brasil registra episódios diários de racismo que são “gravíssimos”. Os casos também são registrados no futebol brasileiro, visto que, no último fim de semana, o goleiro Caíque, ex-Vitória e atualmente no Ypiranga-RS, foi vítima de racismo durante uma partida do Campeonato Brasileiro da Série C. O episódio ocorreu no sábado (20), e o goleiro baiano acionou o árbitro para denunciar que um homem atrás do gol o chamava de “uva preta”.

Segundo levantamento do Observatório da Discriminação Racial do Futebol, o Brasil registrou aumento no número de ocorrências de racismo no ano passado. Em 2021, o Observatório anotou 64 situações de racismo. Já em 2022, foram comprovadas 90 situações – um aumento de 40%.

Outro episódio que marcou o futebol brasileiro aconteceu contra o goleiro Aranha, que sofreu racismo durante uma partida do Santos, equipe que defendia, contra o Grêmio, na casa do adversário, na Copa do Brasil de 2014.

“Daí, a ideia de ser exemplo para a Espanha ou qualquer outro lugar me parece uma impropriedade”, enfatizou.

Manifestação do governo brasileiro

O professor também avaliou como “positiva”, a medida do Ministério da Igualdade Racial (MIR), em acionar as autoridades da Espanha para tomar providências após o caso envolvendo o jogador brasileiro. Para ele, a ação leva o debate para as instâncias institucionais e estatais.

“A medida foi positiva. É importante que o Estado brasileiro se manifeste com veemência  na defesa de Vinicius, como um cidadão brasileiro e em uma espécie de contribuição ética para um debate que ganhou dimensão internacional. O fato de o Estado brasileiro ingressar no debate  força o Estado espanhol a se manifestar, e transforma o debate em um debate movimentado nas instâncias institucionais e estatais, visto que já houve manifestações de organismos da ONU, por exemplo. Então, é muito positivo”.

No entanto, Samuel Vida ressaltou que é necessário que o Estado brasileiro também esteja atento ao enfrentamento ao “racismo cotidiano na realidade brasileira”.

“É preciso registrar que essa veemência manifestada pelo Estado brasileiro na crítica ao que houve na Espanha  precisa se manifestar para dentro, assegurando manifestações veementes por parte do Estado no enfrentamento ao racismo cotidiano na realidade brasileira. Quando falamos em genocídio negro, estamos falando de forma preponderante, em mortes provocadas pelo Estado, pelas polícias, por uma política de segurança pública que não é colocada em debate”, enfatizou.

“Espero que a ministra Anielle Franco (Igualdade Racial) e o governo Lula tenham a mesma coragem, e sejam aplaudidos com a mesma alegria, ao assumir o dever de combater o racismo internamente, assumindo o compromisso de pautar questões sensíveis como a violência policial, titulação das terras quilombolas e tantos outros elementos que envolvem a luta antirracista brasileira”, completou.

 

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