Como Rogéria enfrentou o luto pela morte do pai — e o que o especialista Tom Almeida ensina sobre essa travessia
A experiência de Rogéria e a análise de Tom Almeida, especialista em luto, revelam como acolher a dor e seguir em frente com leveza
José Cruz/Agência Brasil
Rogéria Cardoso perdeu o pai há cerca de um ano e, desde então, vive com a impressão de que “o chão saiu dos meus pés”. Natural de Camamu, no litoral sul da Bahia, a auxiliar de escritório conta que o início do luto foi diferente do comum, marcado pela demora em compreender a perda, apesar de não ter vivenciado alterações psicológicas significativas.
“A gente nunca está preparado pra perder ninguém, nem um artista que a gente só vê e nem sabe que a gente existe, quanto mais um pai. Lembro que quando soube, chorei, sim, mas fui tomada por uma espécie de entendimento do que havia acontecido, não sei explicar. Parecia que eu era a pessoa mais evoluída do mundo, pensava: ‘ok, é isso, morreu, é normal, todo mundo morre'”, relata Rogéria, em entrevista ao Portal Muita Informação.

Foto: Unsplash
O momento em que a ficha caiu
“Até o dia que levei uma espécie de tapa na cara – acho que meu mesmo. Passei a chorar todo dia, não tinha vontade de sair nem de conversar, comer. Com o tempo, fui entendendo, passei a focar em lembranças, principalmente as engraçadas – ele tinha uma ‘veia cômica’ muito forte. Ainda dói, mas a gente aprende a conviver. Hoje, lembro dele com mais calma, com saudade boa”.
Para ela, imaginar o pai lidando com a própria morte ajudou a atravessar os momentos mais difíceis. “Eu pensava assim: ‘imagina ele falando: ‘e quem disse que eu queria morrer agora? Que droga’, mas com humor. Em outros momentos era: ‘Não lembro de ter o evento morrer anotado na agenda, não, devo ter me confundido’. E ainda me questionava: ‘o que será que ele está aprontando no céu agora?’. Imaginava ele conversando coisas engraçadas com o pessoal lá de cima, rindo bastante, brincando, igual às memórias que tenho dele aqui”, explica.
O momento em que a “ficha caiu” foi decisivo para Rogéria buscar conexão com quem estava ao seu redor. “No começo eu não queria falar sobre isso, mas fui fazendo no meu tempo e acho que acabou fazendo bem. Quando vou pra Camamu é um desafio, vem lembranças assim aos montes, mas a gente tem que lidar com isso”, afirma.
A experiência de Rogéria é comum e reflete o processo de luto como um percurso individual, em que cada pessoa atravessa fases distintas de compreensão, tristeza e adaptação. Especialistas destacam que conversar sobre a perda, resgatar memórias e compartilhar sentimentos são passos importantes para transformar a dor em algo que facilita a continuidade da vida.
Além disso, a sociedade vem resignificando o luto nas últimas décadas. Rituais presenciais e religiosos coexistem com novas formas de homenagem. A pandemia de Covid-19 intensificou essas mudanças, obrigando muitas famílias a repensar as despedidas e a busca por acolhimento coletivo.
Para Rogéria, a experiência trouxe também uma mudança na percepção sobre a vida e o amor. “Com a partida de meu pai, sinto que passei a dar mais valor às pessoas e a momentos simples. Antes eu deixava muito visitas e ligações pra depois. Hoje eu faço questão de falar com minha mãe, com meus irmãos, mas na hora. Quando penso: ‘vou ligar mais tarde’, ligo agora. A vida é curta, a gente precisa demonstrar amor”, diz.
Luto como processo natural e saudável
Tom Almeida, escritor e fundador do Movimento inFINITO, que promove diálogos sobre viver e morrer, reforça que o luto pode ser um processo de transformação e de reconexão com a vida, e não apenas de dor. Para ele, reconhecer a perda, compartilhar lembranças e aceitar a finitude são passos essenciais para atravessar o luto de maneira saudável e afetiva.
Tom destaca a importância de compreender o luto como um processo natural e saudável, vivenciado diante do rompimento de um vínculo afetivo importante — seja pela morte de alguém amado, pelo fim de uma relação ou por uma grande mudança. Ele explica que esse rompimento cria um sentimento que precisa ser reconhecido e processado, como parte da reorganização emocional.
“O que a gente vem sentindo — e é uma mudança ainda sutil —, é que a gente acabou entendendo, às vezes, que o luto deveria ser medicado. Então, a pessoa vivendo uma tristeza profunda, por um rompimento, por uma morte, automaticamente aquela pessoa já era indicada que ela fosse tomar algum remédio, alguma coisa, ou já diagnosticada como uma depressão”, afirma.

Foto: Acervo pessoal
Ele reforça que o luto não necessariamente é uma depressão. Segundo ele, trata-se de uma tristeza profunda e, em alguns casos, um percentual dessas pessoas pode evoluir para um luto complicado, quando há necessidade de tratamento e acompanhamento mais específico.
Escuta, acolhimento e o poder da presença
Na avaliação de Tom, o trabalho desenvolvido pelo Movimento inFINITO tem ajudado as pessoas a reconhecer o luto como parte natural da vida. Dar nome aos sentimentos e compreender suas formas, ele diz, é um passo importante para lidar com a dor de forma consciente e afetiva.
“Eu acho que com o que a gente vem fazendo no inFINITO, ajudando as pessoas a dar nome para os tipos de luto, as pessoas entendem que aquilo é natural. De uma certa forma, ter uma permissão para entender esse processo também vem trazendo para as pessoas uma apropriação de poder se olhar e se cuidar e viver esse processo de dor e de desafio e entender que aquilo tem um impacto muito grande na vida da pessoa e que aquilo é natural”, explica.
Ao refletir sobre o que mais ajuda e o que mais atrapalha no processo de luto, Tom aponta que o maior erro é tentar “salvar” alguém da dor. Ele observa que frases prontas, ditas no intuito de consolar, acabam invalidando o sentimento e intensificando o sofrimento.
“Eu acho que o que mais atrapalha é as pessoas tentarem salvar a pessoa, no sentido de minimizar aquela dor. A palavra minimizar é importante, no sentido de muitas vezes a gente, no intuito de ajudar, talvez traga frases prontas: ‘Ah, mas ela já era muito velhinha’, quando uma pessoa idosa morre. Ou quando uma pessoa tem uma perda neonatal: ‘Ah, pelo menos você não chegou a pegar amor por essa criança, você não chegou a criar um vínculo’, ou então: ‘você é jovem, você vai poder ter outro filho’. Qualquer frase que tente diminuir a dor, isso traz um sofrimento muito maior”, diz.
Para ele, o acolhimento, a escuta e a presença são gestos que realmente ajudam quem sofre. Demonstrar afeto sem ultrapassar o limite da pessoa em luto é uma forma de cuidado.
“E o que pode ajudar é escuta, é falar, ‘tô aqui’, ‘tô presente’, sem tentar minimizar, ‘eu não sei o que dizer, eu tô aqui pra te trazer conforto’. É amor. ‘Vou te mandar um bolo’, ‘eu te mando alguma coisa’, ‘eu te mando flores’. Se fazer presente, mas sem atropelar essa pessoa, sem passar do ponto que ela está colocando como um limite”, completa.
Luto, amor e o papel dos rituais
Tom reforça que o luto está diretamente ligado ao amor. Quanto mais forte o vínculo, mais desafiador o processo de separação. Ele afirma que essa relação ajuda a compreender o luto também como expressão da importância daquilo que foi vivido.
“O luto é um processo natural referente a um rompimento afetivo. Quanto mais esse vínculo é estabelecido, quanto mais importante ele é, mais doloroso é este rompimento. (…) Quando a gente fala essa narrativa, de uma certa forma, também a pessoa entender que: você abriria a mão desse amor para não sentir essa dor? Você preferia não ter vivido essa história, você preferia não ter tido relação com essa pessoa? E normalmente a resposta é ‘não, que bom que eu vivi isso’”.
“De uma certa forma, ajudar a pessoa a olhar pelo privilégio de ter vivido essa história, essa relação, de ter tido aquela pessoa na vida dela”, observa.
A pandemia, segundo ele, trouxe luz à importância dos rituais de despedida. A impossibilidade de participar desses momentos fez as pessoas entenderem o papel simbólico e emocional que eles cumprem na elaboração da perda.
“As pessoas entenderam a importância, porque normalmente as pessoas dizem ‘ah não, eu não gosto de velório’, ‘eu não gosto de participar de enterro’. Só que quando começamos a observar que muitas pessoas estavam vendo esse processo sem a possibilidade de despedida, isso ficou claro que ‘nossa, como é importante’”, afirma.
Para ele, esses rituais permitem à pessoa reconhecer cognitivamente e emocionalmente que a perda realmente aconteceu, além de oferecerem um espaço de acolhimento e expressão da dor.
“Os rituais são importantes porque eles nos ajudam a elaborar a perda. Além disso, os rituais são o espaço onde você pode expor a sua dor, você pode se fragilizar, você pode chorar sem nenhum tipo de julgamento. E depois que isso acontece, a sociedade já começa a julgar mais. Então ali é um espaço onde eu posso expressar minha dor, onde eu vou ser acolhido, onde as pessoas próximas estão me apoiando”, pontua.
O valor dos lutos invisíveis
Tom também destaca a necessidade de ampliar o debate sobre os chamados “lutos não legitimados”, muitas vezes invisibilizados pela sociedade. Ele lembra que negar o direito ao sofrimento causa mais dor e isolamento a quem vivencia essas perdas.
“A partir do momento que a gente vai expondo essa questão dos lutos não legitimados, que muitas vezes eles são invalidados, minimizados, ele causa muito mais dor. Quando a sociedade vem e fala: ‘você não pode sofrer por isso’, ou ‘não faz sentido você sofrer por isso’, isso traz muito mais angústia, e além disso também pode trazer isolamento. Por isso que é importante a gente ir educando a sociedade e mostrando onde o luto pode estar presente”, afirma.
Para o fundador do Movimento inFINITO, falar sobre cuidados paliativos e finitude ajuda a construir uma narrativa mais leve e digna diante da morte. Ele acredita que, quando há acolhimento e respeito aos desejos da pessoa, o luto tende a ser mais saudável.
“A narrativa que eu tenho para contar sobre aquela experiência de perda, apesar de ser desafiadora, apesar de o luto estar presente, de haver uma tristeza, uma dor, uma saudade, mas eu tenho uma narrativa de dignidade, então isso me conforta. Quanto mais repertório a gente tem, mais a gente entende o que a gente está vivendo. Então, a gente também não se julga, entende, faz com que os lutos possam ser mais rápidos, mais saudáveis”, diz.
Ele reflete sobre a possibilidade de transformar a dor em propósito. Tom acredita que esse pode ser um caminho de cura e de sentido, mas ressalta que não é o único. Cada pessoa, segundo ele, encontra sua forma de reconstruir a vida após a perda.
“Pode ser um caminho muito importante, mas não necessário que todos devam seguir, não é uma recomendação. No meu caso foi. O Movimento inFINITO surgiu por conta das experiências das perdas pessoais que eu tive, e que eu entendi que a sociedade precisava estar mais munida de informação para viver essa experiência. Então, sim, é um caminho de entendimento, mas não o único caminho”.
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