Brasil Indígena e quilombola: a aliança contra o Marco Temporal

Por Por Claudia Correia*
16/09/2023 às 14h22
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Foto: Divulgação
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Alguns registros na historiografia apontam para alianças táticas e estratégicas entre negros escravizados trazidos da África e  populações indígenas no Brasil. A experiência das revoltas de escravizados, como a dos Búzios em 1798, na Bahia, dos quilombos, como o de Zumbi dos Palmares (século XVII), em Alagoas, e as batalhas pela Independência do Brasil na Bahia demonstram que os ideais de Liberdade e Justiça unificaram a luta dos oprimidos contra o sistema colonizador português.

A violência sexual atingiu as mulheres indígenas e negras, as escravizadas serviam como "amas de leite" para amamentar os filhos de famílias brancas e seus filhos eram apartados para o comércio escravista. Grande número de aldeamentos indígenas foram destruídos por agressões coloniais, assim como ocorreu com quilombos, ou por epidemias trazidas pelo colonizador, e a dispersão dos povos, além de imposições opressivas da ordem colonial, levaram ao desaparecimento de costumes e de línguas.

E no Brasil contemporâneo, como compreender as demandas dos povos indígenas e da população negra num contexto de um Estado, que mesmo se pretendendo "democrático", é controlado por classes dominantes fundamentalmente brancas, marcadamente excludentes e racistas? Como definir estratégias políticas de sobrevivência que unifiquem essa histórica resistência? Os impactos das mudanças climáticas e as tragédias ambientais afetam de forma mais dura negros e indígenas, agravados pelo descaso do poder público e do racismo ambiental.

Vale lembrar que a Bahia, que protagonizou as lutas populares pela Independência do Brasil, possui a maior população quilombola do país em números absolutos, 116,437 mil segundo o IBGE (2022), mas tem o terceiro menor percentual de quilombolas residindo em áreas oficialmente delimitadas. É ainda o segundo estado de maior população indígena, 229,1 mil (IBGE, 2022), ficando atrás apenas do Amazonas.

Acredito que as frequentes ameaças aos territórios e à vida tanto dos povos indígenas como  da população afrodescendente propõem uma agenda política comum de luta anti-opressão, na busca por direitos democráticos efetivos, inclusive efetividade daqueles já assegurados na legislação, conquistados às duras penas.

O genocídio orquestrado pela elite econômica, bem representada nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, tem condenado ao extermínio nosso patrimônio histórico e nossa diversidade cultural, destruindo vidas e áreas historicamente preservadas por essas comunidades.

A concentração de terras nas mãos de poucas famílias, de forte influência política sobre os poderes públicos, a exploração predatória dos recursos naturais e a expansão imobiliária sustentam as práticas que violam os direitos das comunidades indígenas e quilombolas.

A Articulação de Povos Indígenas do Brasil-Apib e a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos-CONAQ têm denunciado as ameaças e assassinatos de seus líderes e a lentidão no processo de certificação e homologação de demarcações de seus territórios em todo o país.

Os assassinatos recentes de Mãe Bernadete, líder do Quilombo Pitanga de Palmares, em Simões Filho, Bahia, e dos jovens Samuel e Inauí Pataxó, da Terra Indígena Barra Velha, em Porto Seguro, Bahia, são fatos de natureza convergente. A não demarcação de territórios e sua proteção, assegurada na Constituição Federal, está por trás da violência e dos conflitos no campo no país, fartamente documentados no Relatório Anual da Comissão Pastoral da Terra- CPT, lançado recentemente.

No momento em que o Senado Federal e o Supremo Tribunal Federal -STF analisam e votam a famigerada tese do "marco temporal" - uma tentativa mal disfarçada de retroceder à ordem colonialista racista arbitrária -, apresenta-se uma oportunidade de unificar as lutas dos movimentos negro e indígena para uma efetiva construção democrática, após os recentes anos tenebrosos de desmonte das políticas públicas inclusivas e de tentativas de destruição do Estado Democrático de Direito.

A proposta retrógrada, sustentada por setores ruralistas e conservadores, defende que a demarcação de terras indígenas aconteça mediante a comprovação que aquele povo indígena estava no espaço requerido em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Por enquanto, até a última sessão de julgamento no STF dia 31 de agosto, a votação computa 4 votos contra a tese, incluindo o relator Ministro Edson Fachin e 2 favoráveis.

Os principais argumentos contrários são: o direito originário dos povos indígenas sobre suas terras, ou seja, anterior à própria formação do Estado e a ocupação tradicional dos territórios, independente de marco temporal e da configuração renitente do esbulho. 

É evidente que apenas a luta contra o marco temporal nesse cenário não é suficiente para unificar as agendas dos movimentos indígena e negro no que se refere à defesa dos direitos territoriais, no contexto de tantas demandas específicas e complexas. A diversidade de situações, as particularidades de cada região, a influência do poder local, a organização política e o perfil das lideranças, específicos de cada estado, configuram um universo complexo para um alinhamento a curto prazo.

Acredito que apesar das dificuldades, a atual mobilização contra o marco temporal pode reeditar uma unidade histórica que fortalece a afirmação de nossa identidade étnica plural, a nossa ancestralidade, e finalmente poderá restituir os direitos dos povos originários e a reparação ao povo negro.

* Claudia Correia, assistente social, jornalista, Mestra em Planejamento Urbano e Regional (UFRJ). ccorreia6@yahoo.com.br 

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