Psicóloga negra brasileira relata vivência em Portugal: "Existe uma animosidade nas relações sociais"

Ao comentar caso de racismo contra filhos de casal de atores, Shenia Karlsson destaca a postura dos portugueses: "Eles gostam de dizer que são conservadores, mas são preconceituosos mesmo"

Por Bruna Ferraz
06/08/2022 às 08h20
  • Compartilhe
Foto: Divulgação
Foto: Divulgação

O episódio de racismo vivido pelos filhos dos atores Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank  reacendeu o debate sobre o preconceito vivenciado pelas pessoas negras. No último dia 30 de julho, Titi e Bless, nascidos no Malawi, país no sudeste da África, foram vítimas de ofensas raciais por parte de uma portuguesa em um restaurante na costa do país europeu.

A mulher chegou a chamar as crianças de "pretos imundos" e ordenou: "Voltem para a África". A agressora referia-se também a um grupo de angolanos que estava no local. As crianças comunicaram o fato aos pais, que chamaram a polícia. Giovanna chegou a agredir a mulher, que foi detida por desacato aos policiais, mas solta posteriormente. O casal de atores registou uma queixa contra a portuguesa e aguardam as investigações.

O Portal M! conversou com a psicóloga Shenia Karlsson, mulher negra que vive há quase cinco anos em Lisboa, capital de Portugal. A carioca é psicóloga clínica especialista em Diversidade, mestranda em Estudos Africanos no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP), dretora do Departamento de Sororidade e Entreajuda no Instituto da Mulher Negra de Portugal e cofundadora do Papo Preta: Saúde Mental da Mulher Negra.

"A imigração é um processo que pode ser traumático. Eu acho que dei mais ou menos uma sorte, pois juntei a minha bagagem profissional com uma oportunidade de mercado, então me adaptei muito bem profissionalmente aqui", afirmou a psicóloga.

Shenia se mudou para o país europeu em busca de crescimento profissional e para fugir da violência e dos altos custos de vida no Rio de Janeiro. Ela acredita que a mudança foi positiva, mas destaca que os imigrantes, principalmente os vindos de ex-colônias portuguesas, sofrem hostilidades do povo local.   

"Existem pontos negativos no quesito social. A questão social é que eu sou uma mulher, brasileira, negra e mãe de um filho negro. Então, eu sou bem cautelosa. Não me vejo uma mulher livre.", declarou.

Ela afirma ter escolhido Lisboa como a sua nova casa pela facilidade da língua e para que suas titularidades profissionais fossem reconhecidas, visto que Brasil e Portugal possuem um acordo amplo de reconhecimento neste campo.

Na época, ela viajou com o filho Zack, de 11 anos, e o marido, falecido no ano passado em decorrência da Covid-19. Entretanto, Shenia constata que existe uma complexidade na convivência com os portugueses.

"Eu já venho de um país em que a questão racial é um problema, então mudo para outro que o colonizou e tem um histórico mal resolvido com a ex-colônia. Eles gostam de dizer que são conservadores. Eu gosto de dizer que eles são preconceituosos mesmo. É um país colonial. Todos os países estruturados pelo colonialismo têm o racismo como uma sustentação da sua estrutura. Eu sou pesquisadora, trabalho com isso. Sem a hierarquização racial, fica complicado sustentar algumas sociedades que protegem alguns grupos sociais em detrimento de outros", afirmou.

 

Atriz não sofreu represálias por ser branca

Shenia, que também realiza aconselhamento para famílias inter-raciais ou brancas que adotam crianças negras, comentou sobre o caso envolvendo os filhos de Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank.

Ela afirma não saber se chegaria a bater na mulher que proferiu as ofensas raciais, justamente por ser uma mulher negra. Para Shenia, o fato de a atriz ser branca contribuiu para que ela não sofresse represálias, até mesmo da própria portuguesa, que poderia querer denunciá-la.

A psicóloga acredita que, pela cultura e pelas leis portuguesas, a mulher só foi levada à delegacia por ter desacatado os policiais, não pelo ato racista.  

Shenia também lamentou o pronunciamento do presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Souza. Após o caso envolvendo Titi e Bless, o líder veio a público dizer que existe racismo no país, mas que não é possível generalizar.

Para a brasileira, a fala do presidente diz muito sobre o pensamento dos portugueses, que ao invés de enfrentar o problema, tentam amenizá-lo. "Quando há uma negação do racismo e da xenofobia, não há espaço para discutir e para a melhora", pontuou.

A psicóloga, que afirma vivenciar situações de xenofobia diariamente na sua rotina de trabalho, também destaca uma divergência entre a política migratória de Portugal e a aceitação dos nativos diante dessas mudanças.

"Portugal é um país pobre, e a Europa está em crise. Por isso, o governo português tem criado facilitadores para o fomento do processo imigratório. Em contrapartida, a sociedade portuguesa, baseada em estruturas complexas, projeta o seu passado de invasão em qualquer chegada, em qualquer corpo que não seja português, principalmente em corpos negros e imigrantes das ex-colônias. Então, eles se sentem muito invadidos. Eles são muito territoriais", afirmou Shenia, que pontua ainda o fortalecimento da extrema-direita em Portugal como um impulsionador dessa animosidade.

A brasileira acredita que, sendo uma mulher branca, teria mais facilidades de aceitação em Lisboa, contudo, por ser brasileira, já poderia ser recebida com animosidade.

"Talvez uma pessoa brasileira branca, que não tivesse esse marcador de pele, poderia ser mais confortável, até no falar, pois o sotaque traz também uma grande diferenciação. Os portugueses defendem muito as características da identidade nacional. É algo muito importante para eles, é como se fosse um patrimônio, então eles realmente fazem diferenciação", disse ao Portal M!

Mesmo após ter testemunhado casos brutais de racismo e xenofobia durante os seus cinco anos em terras portuguesas, Shenia Karlsson acredita que, ao menos para ela, as mudanças foram benéficas.

"No Rio de Janeiro eu teria que lidar com outros problemas", lembrou. Contudo, a psicóloga acredita que o país que escolheu para viver seria ainda melhor se não fossem os marcadores sociais que definem o estrangeiro sempre como alguém não pertencente àquele lugar.