Andar com fé, com ciência e arte - e claro - com Gil, eu vou

Por Ícaro Mota Oliveira*

Por Ícaro Mota Oliveira*
20/11/2021 às 08h00
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Foto: Divulgação
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Para muitos, ciência e arte são, comumente, entendidas como campos bem semotos, têm objetivos, práticas e públicos diferentes. Apesar disso, posso dizer-lhes que é possível entender ciência como cultura e há muitos estudos que comprovam tal feito. Ao trabalhar ciência como cultura, podemos aproximar pessoas que não são do campo acadêmico (de universidades e/ou dos grandes centros de pesquisas) para refletir um pouco como esse conhecimento pode influenciar em suas vidas... É sobre pensar nos diálogos que a ciência tem com os mais diversos setores e campos de saberes, onde "nasce" uma bela relação entre ciência e artes. E, partindo desta premissa, qual a perspectiva entre ciência e música? 

Ah! São inúmeras, desde a criação/inspiração das letras até as mais diversas sensações [ocasionadas por reações químicas em nosso corpo] que nos "despertam" quando escutamos quaisquer canções. Em 1997, o tropicalista Gilberto Gil lança o álbum Quanta, constituído por 26 músicas, participação especial de Milton Nascimento e, a contracapa do disco é constituída por uma carta (de apresentação) de César Lattes. 

Para alguns, o nome Lattes é bem familiar, desde o início da graduação que somos premidos a "preencher o Lattes". Lattes, para nós acadêmicos, constitui de numa plataforma onde "alimentamos" com todas as nossas produções científicas/literárias, participações em eventos, congressos etc. Em suma, trata-se de um currículo nos padrões do ensino superior. O que deveria ser apenas um espaço destinado ao registro de informações, acaba tornando-se uma prisão! Essa destinada principalmente na elaboração de artigos! Atire a primeira pedra quem não ouviu: "você precisa publicar artigos"! Sabem aquele velho ditado, "casa de ferreiro, espeto de pau"? Pois bem, quem muito nos cobra acaba nem sendo o rei ou a rainha de copas da jogada! Ademais, o sistema Lattes é constituído por inúmeros campos que podemos preenchê-los, sem cobranças, com verdade e lealdade, com respeito, obedecendo o próprio tempo. Fazer ciência vai além do ter um número de artigos publicados! Às vezes, você está sendo somente uma máquina de fazer artigo, sem inovação, sem contribuição significativa. "Viver, não cabe no Lattes"! Olhe, a Síndrome de Burnout, pessoal! Pense nisso!

Recuperando o fio da meada: por que César Lattes escreveu a tal carta? Primeiramente, ele foi um cientista, físico e matemático, indicado duas vezes ao Nobel, mas não ganhou. Entretanto, ganhou um samba-enredo em sua homenagem, no carnaval de 1947, pela escola de samba Estação Primeira de Mangueira. Ciência e Arte, parceria de Cartola e Carlos Cachaça, ficou em segundo lugar na avenida - num tempo em que a Portela era imbatível -, mas, ao contrário do samba vencedor, teve uma marcante regravação 30 anos depois por Gilberto Gil. A carta de apresentação, também, é de agradecimento ao artista pela sua contribuição em divulgar a ciência sob o viés artístico no país.   

O álbum de Gil é muito emblemático porque traz em teu título um enunciado científico, mas de teor artístico. Quanta versou sobre ciência e arte de uma maneira bem singular. Sem frívolas. Livres de anedotas, mas com muito estudo, delicadeza e primor. Com isso, de alguma forma, pôde aproximar o conhecimento científico da população em geral, reforçando a maneira pela qual a ciência permeia na cultura. A ciência é uma fonte inesgotável de conhecimento, é polivalente, contribuindo na melhoria da qualidade de vida das populações e, a priori, enriquecendo as sociedades intelectual e culturalmente. 

Com um repertório vasto e que perpassa pelas diversas ciências, filosofias, crenças e conhecimentos, Gil consegue manter algumas teorias científicas - como da Teoria Quântica - e, também, fazer trocadilhos de cunhos artísticos. Quanta é um álbum conceitual, expandiu-se no tempo e no espaço o horizonte temático do "engenheiro musical" Gilberto Gil. Frisa-se que, no último dia 11, o multitalentoso artista foi eleito para ocupar a cadeira de número 20 na Academia Brasileira de Letras (ABL). O que isso significa? Uma honra.

No mês em que se comemora o Dia da Consciência Negra (20 de novembro) e ter o Gil eleito como imortal na ABL é propriamente "andar com fé" por dias melhores, é lutar em prol da democracia, na defesa da pluralidade, da inclusão, na defesa da diversidade, é significativo. Poeta de um país cosmopolita, Gil consegue ir do erudito ao popular em suas canções-poemas, o povo será bem representado no seu mais novo palco. Tenho a certeza que, ele conseguirá mudar o cenário deste país, a partir das inovações e transgressões conforme já foram feitas nos embalos dos anos 60 durante o Tropicalismo.
 
Pela sua força, pela sua coragem, na humidade em ser um eterno aprendiz, Gil consegue fazer escolhas informadas e conscientes. Brinca feito menino subindo numa árvore, alcançando os galhos mais altos, alcança concomitantemente o desenvolvimento literário, a sensibilização para a ética, a empatia, de forma feliz e libertária, que aos 79 anos segue em turnê mundo afora com os filhos e netos. Ensinando sobre cultura, sobre [cons]ciência, arte, sobre seu povo, sua origem, sobre vencer. Se o Chacrinha estivesse vivo, estaria balançando a pança e buzinando para a moça, o moço, a tia, o senhor, a criança, para todos. Sabes por quê? Porque a ocupação de Gil na ABL terá um novo sabor. Sabor de poesia, poesia cotidiana, simples, popular e pura! 
De todo povo brasileiro para você: "Aquele abraço". 
 

* Ícaro Mota Oliveira é Doutor em Ciências pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Mestre em Química pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), graduado em Química Licenciatura pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), atua nas áreas de Nanotecnologia, Química de Materiais e Educação Química, diretor executivo e membro da Academia Brasileira de Jovens Cientistas (@jovenscientistas.abjc), divulgador científico e pesquisador, membro colaborador do Ciência Brasileira é de Qualidade (@ciencia.brasileira), do QuiCiência (@quicienciaiqb) (IQB/UFAL), da Usina Ciência da Pró-Reitoria de Extensão (PROEX/UFAL) e revisor dos periódicos.

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