Política de cotas se consolida como viés democratizador do ensino superior

Pró-reitores da Universidade Federal da Bahia trazem detalhes de como esta ação afirmativa está inserida na instituição 

Por Tiago Lemos
20/11/2021 às 08h20
  • Compartilhe
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

A política de cotas democratizou o acesso à Universidade Federal da Bahia (Ufba) e elevou a sua excelência acadêmica. A avaliação é do pró-reitor de Ensino de Graduação da instituição, Penildon Silva Filho. Neste Dia da Consciência Negra (20), o Portal M! buscou saber como andam essas políticas afirmativas na Ufba, onde as cotas são destinadas a alunos da rede pública, além de ter um recorte étnico-racial da região.

A Lei de Cotas, de número 12.711, de 2012, é um dos maiores avanços nas políticas de ações afirmativas no Brasil. Ela garante a reserva de 50% das vagas nos cursos e define que as instituições de ensino superior vinculadas ao Ministério da Educação (MEC) e as instituições federais de ensino técnico de nível médio devem reservar 50% de suas vagas para as cotas. 

"Ampliamos o acesso e as cotas vieram democratizar, permitir que as pessoas que são de escolas públicas, alunos negros, indígenas, pudessem também se inscrever na universidade. Consideramos positivo porque a Ufba passou pelo processo de democratização do acesso e melhorou a sua excelência acadêmica", detalhou Penildon, que é professor do curso de Fonoaudiologia. 

Ele lembra que a Ufba começou a ter cotas na graduação antes da lei federal ser aprovada, em 2005. "E, quando chegou a lei de cotas, em 2012, nós implementamos, mas já era muito parecida com o que a Ufba já fazia", completou.

De acordo com o pró-reitor, após a lei federal, "há reserva de 50% das vagas para estudantes de escola pública e, dentro desse segmento, uma representação étnico-racial da região, que é 80% de estudantes auto-declarados pretos ou pardos".

Segundo ele, além dessas cotas, que são federais, a Ufba criou na graduação as cotas supranumerárias, que são para grupos que não estão na lei federal.

"Todos os anos, os cursos da Ufba abrem quatro vagas a mais: uma para índios aldeados, que moram nas aldeias, outra para estudantes de comunidades quilombolas, a terceira para estudantes trans e a quarta para refugiados e imigrantes em situação de vulnerabilidade", detalha.

Há também um terceiro critério. "Além de ter o critério de escola pública e da representação étnico-racial, metade dessas vagas em cada uma das categorias é reservada para estudantes que são de famílias cujo rendimento familiar é de um salário mínimo e meio per capta", disse.

"É muito interessante porque garante também a representatividade dos mais pobres. Cerca de 70% dos alunos das universidades federais são de famílias cujas rendas é de até um salário mínimo e meio per capita. Significa que democratizou realmente o acesso. Dentro desses 70%, 27% vem de famílias de até meio salário mínimo per capita", lembrou o pró-reitor de Ensino de Graduação.

Para a pró-reitora de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil da Ufba, Cássia Maciel, as cotas vieram para trazer ganhos ao ensino universitário público. "A mudança no cenário universitário se dá em várias dimensões, principalmente na questão da produção e circulação do conhecimento", explicou. 

Para ela, em relação à vida política, há outro ganho significativo na perspectiva de um debate a partir da diversidade, composto por atores de várias instâncias, que têm importância e legitimidade social. 

"É inegável que a manutenção e o fortalecimento das políticas de ações afirmativas são estratégicos, indispensáveis, para a consolidação da democracia na sociedade, para os avanços sociais. Hoje, mais de 70% dos estudantes da Ufba se declaram pretos e pardos", complementou Cássia Maciel.

 

Desempenho em alta

Penildon Silva Filho acredita que o desempenho da Universidade só melhorou com a consolidação da lei federal 12.711. "Se pegarmos todas as avaliações feitas pelo Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira], os cursos da Ufba só fizeram crescer na sua avaliação. Até 2014, apenas 40% dos cursos tinham nota 4 ou 5, hoje 90% dos cursos têm nota 4 ou 5", explicou o pró-reitor. 

De acordo com o documento "Ufba em números 2020", elaborado em 2019, pela Pró-Reitoria de Planejamento e Orçamento (Proplan) da Ufba, "12 (92,3%) dos 13 cursos de graduação avaliados no Enade [Exame Nacional do Desempenho dos Estudantes], em 2018, obtiveram conceito 4 ou 5, alcançando a média de 4,38, a maior da série desde 2006.

"Nós não temos diferença entre cotistas e não-cotistas. [...] Ser cotista não é algo que determine o rendimento do aluno na universidade. Ou seja, o aluno se esforça, estuda, se prepara e acaba vencendo os obstáculos na medida do possível", garantiu Penildon.

A Ufba também conta com cotas para negros na pós-graduação desde 2017. Penildon explica que trata-se de uma modalidade diferente. "A Ufba criou a cota de 30% para estudantes negros [pretos e pardos] na pós. Diferentemente da cota da graduação, é uma cota eminentemente étnico-racial", explicou.

"Estamos muito satisfeitos porque isso garante uma democratização do acesso, diversidade maior na universidade, pluraridade social e étnica, e isso não tem impactado negativamene nos cursos. Tem impactado positivamente, tem garantido um desempenho até melhor do que antes", explicou o pró-reitor. 

 

Evasão e pandemia

Em relação à evasão - alunos que abandonam os cursos antes de concluí-los -, o pró-reitor explica que é um fenômeno que ocorre antes da política de cotas e, na maioria das vezes, representa apenas a mudança do graduando para outro curso.

"A evasão é um fenômeno anterior à adoção das cotas, sempre houve por vários motivos. Muitos alunos decidem mudar de curso, e é contabilizado como evasão, mas não deveria", explicou. 

Após a pandemia de Covid-19, a Ufba oferta aulas de forma remota, ou seja, virtualmente. Uma parte dos alunos matriculados na instituição de ensino não está acompanhando as aulas, que retornam ao formato presencial em 2022. Penildon Silva Filho explica que números sobre esses três semestres de aulas durante a pandemia ainda serão consolidados.

"Nós não temos ainda como identificar, por exemplo, a questão da evasão na pandemia, não deu tempo de avaliar. O que nós avaliamos é que, nesses três semestres online, tivemos participação intensa dos alunos, mas não foi total", detalhou o pró-reitor.

Para Penildon, os alunos vão retornar massivamente em 2022. "Alguns não conseguiram fazer o curso online. De 41 mil alunos, tivemos 25 mil fazendo alguma disciplina. O restante evadiu? Acredito que não, acredito que os alunos estão esperando a atividade presencial", explicou. 

Entre os problemas do ensino virtual, o professor de Fonoaudiologia menciona as "dificuldades em ter um computador, sinal de wi-fi, muitos têm planos [de internet] que esgotam rapidamente quando fazem as atividades online". 

Há, porém, quem aproveitou positivamente o ensino virtual. Aluno do primeiro semestre de Direito da Ufba, Jorge Oliveira, 18 anos, tem acompanhado as aulas de Conceição do Coité, na região sisaleira da Bahia, onde conta com o apoio familiar e tem poucas despesas. 

"Foi uma mistura de emoções, mas uma quebra de expectativas. Imaginava que o online iria me trazer qualidade de ensino menor, mas pude estudar sem me preocupar com dinheiro, sem me preocupar com a rotina da cidade grande, de me locomover. Ensino remoto pra mim está sendo bastante interessante, as aulas estão sendo produtivas", explicou o estudante.

"Estou no local que nasci e cresci, isso faz com que a faculdade se torne mais confortável. Ambiente adaptado, próximo das pessoas que eu gosto. Eu acho que estou absorvendo estrutura e qualidade de um ensino muito rico, que é o da faculdade federal, enquanto estou num contexto que me favorece muito, com uma rotina favorável e mais simples por ser online", detalhou o aluno de Direito.

Jorge Oliveira, estudante de Direito da Ufba. Crédito: Arquivo pessoal.

Mas a internet pode atrapalhar, como Jorge lembra: "Já fiquei inviabilizado de assistir aula porque a internet caiu, e tive de sair na chuva pra estudar na casa da minha avó, mais ao centro da cidade". 

De olho nos semestres de 2022, ele fica preocupado por causa das aulas presenciais. "A principal dificuldade será o futuro, o contexto econômico. Meu custo de vida aqui é baixo [...] Vou ter que ir pra Salvador, vou tentar angariar uma vaga na república, mas se não conseguir, não sei realmente o que vou fazer", disse o aluno, que já pensa em formas de obter assistência estudantil.  

 

Assistência estudantil é alternativa

A Lei de Cotas coloca o aluno negro de escola pública na universidade, mas é preciso mantê-lo no curso. É aí que entram as políticas de assistêcia estudantil, que em breve poderão ajudar o estudante Jorge Oliveira.

"Ações afirmativas no geral se configuram não só pela reserva de vagas, mas principalmente pela reserva. Após isso, tem a questão de permanência, e em relação a isso, temos políticas de assistência estudantil. Temos restaurante universitário, creche, residências, transporte intercamping, bolsas de iniciação acadêmica, auxílio moradia, transporte, alimentação, auxílio óculos, auxílio inclusão digital. Também temos uma série de outros serviços de ordem psicossocial", explicou a pró-reitora de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil da Ufba, Cássia Maciel.

Ela detalha que, em sete anos de gestão, muitos alunos foram beneficiados: "Nós temos 10 mil cadastrados. São pessoas que passaram por estudo socioeconômico e tem renda abaixo de um salário mínimo e meio. Destes, 4.300 recebem algum tipo de auxílio dos que mencionei. Então, não há dúvida de que a política de assistência estudantil é fundamental para a consolidação das ações afirmativas". 

Para concluir, Cássia Maciel acredita que as ações afirmativas têm um longo caminho a percorrer: "A minha visão é que essas políticas devem ser aperfeiçoadas, mantidas. Cota, sozinha, não muda completamente a estrutura. É necessário um pacto nacional de que o aluno tenha um pós-permanência na universidade, seja na pós ou na inserção no mercado de trabalho. Precisa haver fortalecimento dessa política".

O pró-reitor Penildon Silva Filho reforça que as cotas precisam ser mantidas e melhoradas.

"Racismo existe e ligado ao racismo existem desigualdades econômicas, sociais ligadas a questões raciais que precisam ser combatidas. Certamente, essa dívida histórica não foi resolvida em dez anos, até porque devemos ter outras ações afirmativas. Precisamos discutir a ampliação em outros campos, na economia, nas empresas, nos empregos, na habitação. As cotas são necessárias e não atrapalham a vida na universidade, garantem que a universidade fique mais rica, plural, diversa e a universidade ganha com isso", finalizou.