Gosto de sapatos forrados e de Roque

Por Gerson Brasil*

Por Gerson Brasil*
05/07/2021 às 08h00
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Foto: Divulgação
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O quarto começa a se desenhar, armários, teto, paredes e a penteadeira, mas são incapazes de reter a toalha no corpo, agora tomado pelo vestido e de alça com o anel e algo preso ao pescoço. Não é uma jóia, nem barbante, mas porcarias apreciadas, prontas para agradar olhares mentirosos, despiste com a capacidade de acolher o que se quer ouvir, deliciosamente sarcástico, mas com o poder descomunal de manter o café da manhã, almoço e todas as utilidades e aborrecimentos diários.

Ontem, jantei, anteontem também, costumo resguardar os costumes, não há muita exigência e sim uma vantagem bendita sobre a religião e outras exigências; essas nos aguardam atrás da porta, como a palmatória, suficiente para reter a concórdia e a obediência. Mas é sempre bom ouvir Roque, tem todas as informações, explicações e a melhor parte, os exemplos.

Nada como um exemplo. Reforça a convicção, idiotia, crendices e as apoteoses exemplares, sempre chamadas a garantir os contratos, e as certezas. Mas tendo Roque ao lado os aborrecimentos perdem força, os contratos se purgam de importância e as convicções ficam dobradas no guardanapo, no colo, enquanto a carne, sempre ela, saborosa, é vista pelos dentes como agradável, mesmo que o diabo do batom exija reparação.

Mas ao diabo o batom e suas exigências. Talvez, fosse proveitoso colocar as exigências nos guardanapos. Do mesmo modo como se guarda o batom na bolsa, sem o compromisso de usá-lo, e como um bom exemplo de como fazer algo sem exemplo.

Roque me pergunta por que uso batom, um momento encantador; afinal porque alguém se interessaria por uma tintura que não serve de exemplo para nada, cola na pele e desaparece sem pedir autorização e juridicamente não pode ser chamado o Exempli gratia, o exemplo, a acomodação, a letra. La lettre.

Roque é bom, divertido, tem aquela canalhice gostosa, condensa e expande o que não me interessa e as poucas coisas por onde passeio; às vezes por fugidio, outras vezes por ocasião, oportunidade e alguns momentos porque me reservo o direito de não servir de exemplo.

Notei que o garçom é alto, se alguém o escolheu por algum método ou escrutínio levou em consideração o peso e a distância entre o chão e o teto do restaurante, mas quando ele se dobra para frente há um franzir de rosto. Uma vértebra fora do lugar, por menor que seja, causa um incômodo terrível e lá está o médico, o inevitável exame tecnológico, o medicamente e a RPG. A vítima segue as instruções e acrescenta um conhecimento instantâneo, prazeroso e capaz de levar a inveja a algum canto, onde esteja pronto o desejo, mui prazerosamente, de ouvir o relato, fazer intervir considerações, a reforçar o saber inesperado.

Não sei onde mora o garçom. De súbito me ocorreu essa falha. Pensei em perguntar a Roque, ele conhece muita gente. Mas me dei conta que haveria o risco de ganhar descrições, e sociologia apaixonantes. Nesse momento, nesse exato momento, bastaria o nome do garçom, a sociologia ficaria para depois. Já terminei de jantar, excelente. Roque, aparentemente, não mudou de peso, pensamento idiota que me ocorreu, afinal, ele não traz marca de obesidade, nem de faquir e tampouco inveja os malhadores de academia. Deus, sempre ele, e o DNA lhe deram o corpo que pode suscitar desejo, pelo menos o meu, mas não tomo como exemplo. Se sou cética? mezzo. Gosto de sapatos forrados com tecido, robe de chambre, pijama e guardo embaixo da cama o urinó; as naturezas são sempre imprevisíveis. Gosto mais de Roque, atende ao cardápio do meu desejo, sem festas, olimpíadas e paredões. Un civilizacion particulier.



Minerva, 1640 por Artemisia Gentileschi (1593-1653), Itália.

Gerson Brasil é jornalista e secretário de Redação da Tribuna da Bahia.
 
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