Racismo estrutural na Espanha: diplomata aponta resistência em reconhecer problema
Orlando Ribeiro critica postura espanhola sobre imigração africana e ataques a Vini Jr.
O embaixador do Brasil na Espanha, Orlando Leite Ribeiro, enviou um telegrama confidencial ao Itamaraty onde aponta uma resistência da sociedade espanhola em reconhecer a existência de racismo estrutural no país. Ribeiro observa que há uma “grande resistência” em “ver-se como racista”, mencionando também a relutância da população e das lideranças políticas espanholas em discutir o tema abertamente. A informação é do colunista Guilherme Amado, do site “Metrópoles”.
Orlando Leite Ribeiro assumiu o cargo em 2022 e desde então representa o Brasil em incidentes de racismo, especialmente os ataques sofridos pelo jogador brasileiro Vini Jr., do Real Madrid. No último domingo (27), Vini condenou atitudes racistas de torcedores do próprio clube contra jogadores do Barcelona, ocorridas no clássico realizado no sábado (26) no estádio Santiago Bernabéu.
No telegrama, enviado à Secretaria de Estado do Ministério das Relações Exteriores em 14 de outubro, Ribeiro comentou o impacto de um recente discurso do presidente espanhol, Pedro Sánchez, que abordou a questão migratória e a discriminação na Espanha. Para o diplomata, as declarações de Sánchez evidenciaram o racismo estrutural presente no país e expuseram a discriminação contra imigrantes.
“Em aditamento ao expediente de referência, avalio que a repercussão do discurso do presidente de Governo, Pedro Sánchez, sobre a questão migratória, evidenciou a discriminação entranhada nas correntes xenófobas e, mais ainda, o racismo estrutural ainda presente na sociedade espanhola — e que o país insiste em tentar negar existir”, escreveu o embaixador.
O discurso de Sánchez, mencionado por Ribeiro, foi proferido no Congresso da Espanha no dia 9 de outubro. Durante sua fala, ele leu um trecho de um jornal da Venezuela de 1949, que relatava a chegada de imigrantes espanhóis ilegais em condições insalubres. Com essa comparação, ele destacou as semelhanças entre a situação dos imigrantes africanos atualmente e a experiência vivida por espanhóis em busca de melhores condições de vida no passado.
Ribeiro também detalhou as reações de partidos conservadores, como o PP e o Vox, ao discurso de Sánchez. Ele observa que, em resposta a uma das críticas, o presidente usou o termo “racista” para contestar a oposição, algo incomum entre os parlamentares que preferem tratar o tema como “ideológico”.
“Apesar de Sánchez e de poucos outros, como o porta-voz do EH Bildu, Mertxe Aizpurua, terem expressamente utilizado o termo ‘racista’, é emblemático que a maioria dos parlamentares prefira utilizar o termo ‘ideológico’ para descrever os dois pesos e duas medidas que discriminam a imigração africana da ucraniana”, escreveu o diplomata brasileiro.
O documento ressalta ainda que a sociedade espanhola, segundo o embaixador, continua a negar as evidências de racismo estrutural, manifestadas tanto no tratamento a imigrantes africanos quanto nos insultos dirigidos a atletas afrodescendentes, como Vini Jr. O jogador brasileiro é alvo constante de insultos racistas em jogos na Espanha, e os poucos que foram condenados judicialmente apenas exemplificam o problema que o país reluta em admitir.
Leia abaixo a íntegra do telegrama do embaixador do Brasil na Espanha:
“Informo. Em aditamento ao expediente de referência, avalio que a repercussão do discurso do presidente de Governo, Pedro Sánchez, sobre a questão migratória evidenciou a discriminação entranhada nas correntes xenófobas e, mais ainda, o racismo estrutural ainda presente na sociedade espanhola – e que o país insiste em tentar negar existir.
Sánchez iniciou seu discurso reconhecendo que a imigração é uma questão delicada, em que as percepções pesam tanto quanto a realidade. E para ilustrar tal afirmação, procedeu à leitura da seguinte notícia da imprensa: “Uma embarcação despedaçada chegou a nossas costas com centenas de imigrantes ilegais a bordo. Os indocumentados detidos, entre os quais havia dez mulheres e uma menina de quatro anos, encontravam-se em condições lamentáveis: famélicos, sujos e com roupas feitas de trapos. O porão da embarcação, que media apenas 19 metros, parecia uma pocilga e desprendia um odor insuportável”.
- O presidente espanhol ponderou que a notícia poderia ter sido publicada em qualquer jornal espanhol nas últimas semanas, em referência a imigrantes nigerianos ou senegaleses, mas que na verdade era uma matéria de 25 de maio de 1949, da Venezuela, referindo-se a imigrantes indocumentados de origem espanhola. Com essa vívida imagem, Sánchez buscou ilustrar a falta de empatia da oposição, que ignora o fato de que, há cerca de meio século, a Espanha e seu povo passavam por período de vicissitudes análogo àquele que hoje impulsiona a imigração africana.
- O líder do Vox, Santiago Abascal, reagiu acusando o Governo de “colaborar com islamitas para promover uma invasão migratória”, e provocou: “se é tão filantropo, por que não coloca os imigrantes dentro de sua casa?”. Em sua réplica, Sánchez valeu-se de uma palavra usualmente evitada: “por que você é tão racista?” Com efeito, o termo racista esteve omisso de outras impactantes intervenções, como a do porta-voz do Sumar, Íñigo Errejón, que preferiu categorizar o problema como “ideológico”: PP e Vox não se opuseram a imigração de mais de 200 mil ucranianos, mas são vocais contra a chegada de indocumentados africanos. No mesmo sentido, Gabriel Rufián, da ERC, acusou as “três direitas” (PP, Vox e Junts) de “mentir sobre os imigrantes – por que 6 mil crianças africanas são uma ameaça e uma emergência nacional, quando 35 mil crianças da Ucrânia não o são?”
- Apesar de Sánchez e de poucos outros, como o porta-voz do EH Bildu, Mertxe Aizpurua, terem expressamente utilizado o termo “racista”, é emblemático que a maioria dos parlamentares prefira utilizar o termo “ideológico” para descrever os dois pesos e duas medidas que discriminam a imigração africana da ucraniana. Há uma grande resistência da sociedade espanhola em ver-se como racista, mesmo frente a óbvios exemplos, como é o caso da imigração ou o dos insultos sofridos por esportistas afro-descendentes. De todo modo, em um tema delicado e em que a percepção vale tanto quanto a realidade, como bem ilustrou Sánchez, é fundamental que o problema seja colocado com clareza, e que a dimensão do racismo estrutural ainda presente seja levada em devida consideração.”
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