‘Cultura da cadeirada’: especialistas avaliam avanço da hostilidade nos espaços de convivência

Ao Portal M!, psicólogos e educadores destacaram que essa postura agressiva, tem prejudicado as relações interpessoais


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Bruno Brito 13/10/2024 18:40 Cidades
‘Cultura da cadeirada’: especialistas avaliam avanço da hostilidade nos espaços de convivência -

O recente episódio envolvendo José Luiz Datena e Pablo Marçal, em um debate entre candidatos a prefeito de São Paulo, evidenciou um novo cenário: a ‘cultura da cadeirada’. Este tipo de comportamento tóxico tem tomado conta dos mais variados espaços da convivência social no Brasil, extrapolando o campo da política, das redes sociais e dos confrontos televisivos, como os protagonizados por figuras públicas como Datena e Marçal.

Ambientes empresariais e familiares, escolas e condomínios, grupos de WhatsApp e redes sociais em geral deveriam ser espaços de diálogo civilizado, mas, muitas vezes, se transformam em arenas, onde comportamentos extremos se destacam: de um lado, a aprovação vazia através de ‘likes’ e emojis de coração; de outro, a agressividade verbal, a grosseria e o temido ‘cancelamento’.

Ao analisar o fenômeno, psicólogos e educadores ouvidos pelo Portal M! destacam que essa postura agressiva, além de prejudicar as relações interpessoais, tem repercussão preocupante no ambiente escolar, onde crianças e jovens já reproduzem comportamentos polarizados, dificultando o desenvolvimento de uma convivência saudável e respeitosa.

Conforme o psicólogo Sérgio Manzione, no Brasil atual tem sido “fácil” perceber a agressividade cada vez mais presente nas interações sociais, mesmo em situações onde são esperados “respeito e civilidade”. “Como no trânsito ou nas redes sociais. Isso tem várias explicações, que vão desde questões emocionais até fatores sociais que nos cercam”, afirmou.

Na avaliação do especialista, há fatores que podem contribuir com este cenário, a exemplo dos psicológicos: como a frustração e estresse; dificuldade de lidar com emoções; desinibição nas redes sociais – há pessoas cujo comportamento muda radicalmente quando estão por trás de telas; e crenças polarizadas. Existem ainda, os fatores sociais: a violência banalizada; a desigualdade social; cultura do imediatismo; além da existência de lideranças que incentivam o confronto.

“Enfim, esse comportamento agressivo não vem do nada. Ele reflete o que a gente vive hoje no Brasil, um país cheio de tensões sociais e emocionais”, descreveu o especialista.

Outro fator destacado pelo psicólogo está ligado ao uso de plataformas digitais, como redes sociais e grupos de WhatsApp, e como esses espaços têm moldado a comunicação entre as pessoas, inclusive com incentivo a polarizações e comportamentos extremos.

“As plataformas digitais moldam nossa comunicação de uma forma que favorece os extremos. Elas incentivam comportamentos polarizados, alimentam a busca por validação imediata e criam uma cultura de cancelamento onde o diálogo e a compreensão se perdem. O desafio está em encontrar maneiras de usar essas ferramentas de forma mais consciente e equilibrada, sem cair nas armadilhas da polarização e do julgamento fácil”, explicou.

Estes ambientes, na avaliação de Manzione, têm promovido a aceleração da polarização, a partir de algoritmos que reforçam a presença de ‘bolhas’, do discurso extremado e da viralização, bem como da falta de profundidade nas relações. Há ainda o desejo por reconhecimento e aceitação, através da busca por validação, além de uma pressão pelo posicionamento. Por fim, ao falar da cultura do ‘cancelamento’, ele listou questões como o julgamento instantâneo do público, além do maniqueísmo digital.

“No contexto brasileiro, o uso das redes sociais tem exacerbado as tensões políticas e sociais. As eleições mais recentes, por exemplo, mostraram como essas plataformas são usadas para espalhar desinformação e acirrar as polarizações. Pessoas que antes conseguiam manter diálogos construtivos sobre temas como política, agora muitas vezes entram em discussões agressivas, reforçando divisões. A polarização política também aumenta os episódios de ‘cancelamento’, onde figuras públicas, políticos ou até amigos próximos podem ser ‘cancelados’ por posições controversas. Além disso, há o uso das ‘fake news’ como ferramenta de conquista de poder, mesmo que a ética e a moral sejam totalmente desprezadas”, pontuou.

O ambiente imaginário das redes sociais

Já o psicólogo, psicanalista e psicoterapeuta da Clínica Holiste, Cláudio Melo, apontou que apesar dos benefícios proporcionados, as redes sociais trazem consigo um aspecto perigoso: a ausência do corpo nas interações.

“Explicando melhor, quando estamos frente a frente com alguém, tendemos a moderar nossos afetos, uma espécie de ‘filtro’ que ajusta nossos desejos e impulsos mais íntimos. Nesse contato direto, ambos os lados fazem concessões em nome de uma convivência com benefícios mútuos. Já nas redes sociais, a falta desse envolvimento ‘corpo a corpo’ cria um ambiente virtual e imaginário, onde o outro facilmente assume o pior ou o melhor de nossas fantasias”, pontuou.

Na avaliação do especialista, a dinâmica imposta pelas redes tem promovido “efeitos profundos” nas relações do dia a dia, com as pessoas agindo como se estivessem em um “palco”, com as interações sendo, cada vez mais, “superficiais e efêmeras”. “Além disso, essa distância favorece o crescimento da intolerância, tanto em relação ao outro quanto a nós mesmos, dificultando o diálogo e promovendo respostas extremas, como a celebração exagerada de um ‘like’ ou a rejeição drástica do ‘cancelamento'”, explicou.

Questionado sobre os fatores psicológicos e sociais que podem estar por trás do comportamento agressivo nas interações, especialmente em contextos que deveriam promover a civilidade, Cláudio Melo afirmou ser um equívoco avaliar que o ser humano busca apenas o prazer e a harmonia.

“Afetos como ódio, raiva e destruição são tão parte da condição humana quanto o amor e o prazer. Quando um sujeito se insere nos laços sociais, desde a infância, há a necessidade de estabelecer limites para controlar esses afetos; afinal, tanto o amor quanto o ódio em excesso podem ter consequências trágicas”, enfatizou.

O especialista pontua, no entanto, que esses limites são formados por valores sociais, leis, tradições e pela cultura. “Porém, ao contrário do que queremos acreditar, esses valores não são estáveis e imutáveis. Cada sociedade ou civilização, e até mesmo diferentes momentos históricos dentro de uma mesma cultura, podem experimentar mudanças significativas nesses valores”, apontou.

Diante deste quadro, o psicólogo lembrou que em períodos de grandes transformações culturais, se torna comum episódios de aumento da violência, tanto individual quanto coletiva, além de maior insegurança e religiosidade exacerbada. “Isso acontece porque os limites que regulavam esses afetos começam a se enfraquecer, permitindo que impulsos e ideias que antes estavam ‘escondidos’ em nossa subjetividade venham à tona, o que intensifica os conflitos sociais”, avaliou.

Educadoras defendem diálogo mais saudável nas escolas

Em função do cenário atual, educadoras ouvidas pelo Portal M! defenderam a necessidade e a importância do incentivo à educação emocional e o diálogo saudável nas escolas. Conforme a pedagoga, psicopedagoga e psicanalista Fernanda Menezes, é necessário compreender que as escolas e instituições de ensino são espaço de diálogo e democracia, com os professores sendo mediadores neste processo.

Por conta disso, ela defende ser necessário que os profissionais trabalhem e falem sobre política, posicionamento, opinião e respeito. “Eles são formadores, são educadores e precisamos ter esse momento dentro da sala de aula e nos espaços de educação, para que a gente possa mostrar para os nossos alunos, que ele tem a opinião dele, que é livre para expressar a sua opinião, porém essa opinião não pode ferir o outro. Então, o respeito tem que prevalecer em todo diálogo. Isso vai diminuir a violência, trabalhar as questões das relações interpessoais, sobre a importância da gestão das emoções”, apontou.

Através dessa iniciativa, a educadora acredita que será possível que os alunos entendam que, mesmo em casos de divergência, não será necessário utilizar a agressividade como eventual resposta.

“Primeiro, precisamos trabalhar o respeito, trabalhar as relações interpessoais. A importância disso, inclusive, como uma das ferramentas para o mercado de trabalho, o respeito à opinião do outro e a gestão das emoções. Precisamos trabalhar ali com relação a como a gente pode e deve gerenciar os nossos momentos de fúria, de raiva, para que isso não venha a reverberar na vida do outro”, enfatizou.

Entre as ações que podem ser adotadas para incentivar o diálogo saudável nas escolas, Fernanda defendeu a necessidade de que temas como a gestão das emoções sejam pautados não apenas na educação básica, mas também no campo acadêmico universitário.

“É necessário que as escolas e instituições de ensino criem programas e projetos pautados nessas temáticas, ressaltando que precisamos respeitar a opinião do outro, mesmo que essa opinião seja divergente do que eu tenha ali como um princípio de verdade. E quando a gente fala de projetos e ações socioemocionais, de relações interpessoais e do respeito, a gente precisa também incluir a família nesse processo, principalmente quando falamos de crianças e adolescentes que ainda não são responsáveis por si”, alertou.

A inclusão da família é defendida pela pedagoga porque, em alguns casos, há o fomento e o incentivo da agressividade. “E acredito também que precisa ter ali dentro da escola, um regimento que venha a trazer não uma punição, no sentido de punir apenas, mas de um trabalho de educação mesmo, em que esse aluno tenha que fazer uma reflexão sobre suas ações e as consequências do que ele causou, por exemplo. Então são ações internas e externas que precisam também abraçar as famílias e pessoas que estão no entorno desses indivíduos”, destacou.

Na mesma linha, a coordenadora pedagógica Arielma Galvão defendeu a importância do diálogo permanente, inclusive como parte do plano de ensino das escolas, de todas as áreas do conhecimento, e do projeto pedagógico. Outra necessidade defendida pela educadora é que as escolas apresentem reações rápidas a eventuais atos de agressividade, movimento de ‘cancelamento’ ou de bullying.

“Tem que agir de pronto, não pode deixar passar. Aconteceu o fato, a gente já traz para a pauta, que é permanente. Por exemplo, viralizar o vídeo de um aluno, em que há um movimento de ‘cancelamento’ ou de fazer chacota, é chamar os alunos envolvidos na situação, tratar a situação, chamar as famílias envolvidas também, para que trate com a família, para que elas tenham conhecimento”, enfatizou.

Ainda conforme Arielma, é importante promover momentos como rodas de conversas, com a participação de professores e funcionários, além de pessoas de fora da instituição, para tratar a temática.

“Pessoas que já sofreram a situação e tem a experiência para contar que é preciso ser diferente, não fazer isso, não fazer esse movimento do ódio, do ‘cancelamento’, e sim do acolhimento, de compreender a diversidade, de valorizar cada pessoa do jeito que ela é, de incluir todas as pessoas. Tem que ser um debate permanente, através de roda de conversa, em sala de aula com o professor, com convidados do próprio território, da escola, do bairro ou outras parcerias também”, explicou.

Como exemplo, a coordenadora pedagógica citou o programa Educa Mais, do governo do estado, em que é possível levar profissionais de psicologia para promover esse diálogo relacionado às emoções. “Essa parte da pessoa saber lidar consigo mesmo, saber aprender a conviver. O estado emocional impacta nas aprendizagens, porque para que a pessoa possa se desenvolver na aprendizagem, ela também precisa saber conviver com as outras pessoas, conviver com a diferença. Então, através do programa Educa Mais, você pode trazer esse profissional para dentro da escola”, destacou.

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