Cíntia Maria: ‘Luta antirracista deve ser coletiva e interseccional’

Diretora do Muncab defende que o combate à discriminação tem de ser contínuo para vencer o racismo estrutural


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Bruno Brito 20/11/2024 14:00 Cidades
Cíntia Maria: ‘Luta antirracista deve ser coletiva e interseccional’ - Cristian Carvalho/Muncab

Na série especial do Novembro Negro, o Portal M! entrevista Cíntia Maria, diretora do Museu Nacional da Cultura Afro-brasileira (Muncab). Com uma trajetória marcada pelo compromisso com a valorização da herança africana e a preservação da memória afro-brasileira, Cíntia defendeu o papel das instituições culturais na promoção da igualdade racial e no combate ao racismo estrutural. Ao falar sobre o tema, ela defendeu que a luta antirracista deve ser “coletiva e interseccional”.

“Reconhecendo as diversas experiências dentro da população negra e promovendo políticas públicas que combatam a discriminação em todas as suas formas. Teorias críticas, como a da interseccionalidade, nos ajudam a entender que as opressões não são isoladas, mas se entrelaçam, e isso deve ser considerado nas estratégias de luta”, refletiu.

Natural de Salvador, Cintia Maria é empresária e gestora cultural, além de cofundadora e gestora de projetos no Núcleo Baiano de Animação em Stop Motion (Nubas), sócia da Editora Emoriô, editora de impacto com foco em visibilizar a produção de livros para pessoas negres e LGBTQIA+. Ela desenvolve e gerencia projetos inovadores, criativos e de impacto social na área cultural, com foco nas populações invisibilizadas e culturas identitárias.

Cineasta, Cíntia também é pioneira no desenvolvimento de filmes multiplataformas com aplicação em 3D, realidade virtual e aumentada na Bahia, além de cofundadora do Cineclube Antônio Pitanga. É uma das idealizadoras do Cine Janela, que, durante o isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19, projetou filmes, poesias e frases de esperança para vizinhos, através da janela do apartamento casa.

Cíntia acumula mais de 30 prêmios durante a sua trajetória como curtametragista de animação, e contribui para a descentralização do audiovisual através da realização de oficinas em quilombos, terreiros, universidades, escolas e bairros populares tendo realizado mais 50 atividades formativas.

O que Cíntia Maria pensa?

  • O que o Muncab preparou para este Novembro Negro?

“O Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab) organizou uma série de atividades que buscam celebrar e refletir sobre a rica diversidade da cultura afro-brasileira na programação do Novembro Negro em Salvador. Nossa atividade principal para o público geral é a estreia da exposição ‘Òná Irin: Caminho de ferro’, sob a curadoria Marcelo Campos, Ayrson Heráclito e Amanda Bonan no dia 28 desse mês. Trata-se da exposição individual da artista Nádia Taquary em sua cidade-natal, cuja poética perpassa a força das mulheres que trilharam caminhos de resistência em busca da liberdade e sobrevivência. A correalização é do Muncab com a Secretaria de Cultura e Turismo do município de Salvador.

Aliado a isso, a exposição ‘Raízes: Começo, Meio e Começo’ também é outro destaque. Primeiro trabalho curatorial autoral desde a reinauguração do Muncab em 2023, a exposição curada por Jamile Coelho, que também é diretora artística da instituição, e Jil Soares, reúne mais de 200 obras do clássico ao contemporâneo. A centralidade da exposição é a memória espiralar e a árvore da memória, considerado a árvore da vida pela cultura africana, dividida em cinco eixos temáticos ‘Origens’, ‘Sagrado’, ‘Ruas’, ‘Afrofuturismo’ e ‘Bembé do Mercado’.

Todas essas atividades destacam a potência criativos de artistas negros contemporâneos. Também promoveremos palestras com especialistas em história e cultura africana e afro-brasileira, voltadas para a valorização das tradições e saberes ancestrais e o mercado das artes visuais. A intenção é não apenas celebrar, mas também provocar um diálogo crítico sobre a história da população negra no Brasil, ressaltando suas contribuições e desafios atuais”.

  • Conceitos relativamente recentes, como afroturismo, afroempreendedorismo e afrofuturismo, vieram para ficar. Como você avalia essa ocupação de espaços da população negra, agora como protagonista da própria história?

“Ao se posicionar como agente de sua própria história, a população negra começa a reescrever narrativas que foram distorcidas, apagadas, marginalizadas ou silenciadas. Essa mudança é um reflexo da luta antirracista e da busca por reconhecimento e direitos, fundamentada em teorias sociológicas que discutem a importância da representação e da autoafirmação cultural.

O afrofuturismo, em particular, nos convida a imaginar futuros onde as contribuições africanas e afro-brasileiras são centrais, oferecendo uma crítica poderosa ao racismo estrutural presente na sociedade contemporânea. Em ‘Raízes: Começo, Meio e Começo’, o núcleo ‘Afroturismo’ se debruça em promover o encontro entre ficção científica, tecnologia, realismo fantástico e mitologia, para retratar a vida plena da população negra nas artes visuais. É uma oportunidade de conhecer melhor esse tema”.

  • Qual a sua visão sobre racismo estrutural e como ele se contrapõe à luta antirracista?

“O racismo estrutural é uma forma de opressão que está enraizada nas instituições sociais, políticas e econômicas, manifestando-se de forma a manter os privilégios da branquitude. Ele se contrapõe à luta antirracista, que busca desmantelar essas estruturas e promover a equidade racial. O racismo estrutural se alimenta de preconceitos e estigmas que perpetuam a desigualdade, enquanto a luta antirracista é um movimento ativo e contínuo que busca transformar essa realidade. É essencial entender que a luta antirracista deve ser coletiva e interseccional, reconhecendo as diversas experiências dentro da população negra e promovendo políticas públicas que combatam a discriminação em todas as suas formas. Teorias críticas, como a da interseccionalidade, nos ajudam a entender que as opressões não são isoladas, mas se entrelaçam, e isso deve ser considerado nas estratégias de luta”.

  • No âmbito cultural, você considera que há avanços? O que precisa ser feito de forma emergencial?

“Nos últimos anos, houve avanços significativos na valorização da cultura afro-brasileira, com um aumento no reconhecimento e na representação de artistas e intelectuais negros em diversos setores culturais. No entanto, ainda há uma longa jornada pela frente. Precisamos, de forma emergencial, fomentar políticas de inclusão e diversidade que garantam a presença de vozes negras em todas as esferas culturais e, principalmente, nos espaços de poder. É fundamental que instituições como o Muncab tenham suporte adequado para implementar programas de formação e capacitação, promovendo acesso à cultura e à educação. Além disso, a desconstrução de estereótipos e preconceitos por meio da educação e da sensibilização da sociedade em geral deve ser uma prioridade. Somente assim conseguiremos avançar em direção a uma sociedade mais justa e equitativa”.

  • A representação da população negra em ambientes de poder, como a política e o mundo empresarial, ainda deixa a desejar. Quais os caminhos para mudar este cenário?

“A sub-representação da população negra em ambientes de poder é um reflexo de séculos de exploração, exclusão e discriminação. Para mudar esse cenário, é necessário um esforço conjunto que inclua a implementação de políticas de cotas, a promoção de diversidade e inclusão nas empresas e a valorização de líderes e empreendedores negros. Além disso, é fundamental que haja uma educação crítica que prepare jovens negros para assumirem papéis de liderança. A literatura racial e teorias como a de justiça social nos mostram que a diversidade nos ambientes de poder não é apenas uma questão de equidade, mas também uma necessidade para a construção de uma sociedade mais democrática e representativa”.

  • Recentemente, causou polêmica a suspensão, por decisão judicial, da posse de uma médica negra aprovada pelo sistema de cotas para uma vaga no corpo docente da UFBA, em favor da primeira colocada na ampla concorrência. Como avalia as ações afirmativas e o que pode ser feito para que decisões como esta não virem rotina?

“As ações afirmativas são fundamentais para corrigir as desigualdades históricas enfrentadas pela população negra. É crucial fortalecer e proteger o sistema de cotas, garantindo que as políticas afirmativas sejam respeitadas e implementadas de maneira que realmente promovam a equidade. A mobilização social e o advocacy [espécie de ‘lobby’, ou estratégia de defesa, em favor de causas sociais] são ferramentas essenciais para pressionar por mudanças nas políticas e para que a sociedade se comprometa com a diversidade e a inclusão”.

  • No contexto da sociedade racista, muito se fala nos malefícios à saúde mental e emocional, gerando o adoecimento da população negra. Como você lida com isso?

“O impacto do racismo na saúde mental da população negra é uma questão crítica, que precisa ser abordada com seriedade. Reconhecemos que o estigma racial e a discriminação podem levar a altos níveis de estresse, ansiedade, depressão e suicídio. Tivemos recentemente o caso do Pedro Henrique dos Santos, que era bolsista em uma escola particular e tirou a sua vida devido o racismo dos colegas. No Muncab, trabalhamos para criar um ambiente de pertencimento para a comunidade negra. Temos um projeto de ter um programa de atendimento a saúde mental dos artistas negros, mas ainda não conseguimos financiamento para a sua implantação. Além disso, é importante que as políticas públicas em saúde mental incluam perspectivas culturais e raciais, oferecendo apoio psicológico adequado e acessível. O fomento ao autocuidado e o acesso a bens culturais que proporcionem o pertencimento também são formas de enfrentar esses desafios, permitindo que a população negra encontre força em sua herança e em sua identidade”.

  • Por fim, que mensagem você gostaria de deixar neste Novembro Negro?

“Neste Novembro Negro, gostaria de enfatizar a importância da valorização da cultura afro-brasileira e da resistência da população negra. É um momento para celebrarmos nossas conquistas, refletirmos sobre nossas lutas e renovarmos nosso compromisso com a equidade e a justiça racial. Que possamos continuar a promover diálogos significativos, educar as novas gerações e lutar contra todas as formas de discriminação. Que possamos construir um futuro em que a diversidade seja celebrada e respeitada, onde a história e a cultura afro-brasileira ocupem o espaço que merecem. A resistência é nossa herança, e a luta pela justiça racial é um compromisso contínuo”.

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