O que os bebês reborn nos revelam sobre a sociedade? Carência, fuga ou terapia?
Quando um boneco parece mais seguro que um ser humano, algo dentro de nós está pedindo cuidado

As pessoas estão ficando loucas?
Essa pergunta surge com frequência quando alguém vê uma mulher adulta embalando, alimentando e até levando ao “pediatra” um boneco hiper-realista. E não é raro ouvir julgamentos do tipo: “isso é coisa de gente doida”, “por que não adota uma criança de verdade?”, ou ainda: “isso é egoísmo travestido de carinho”.
Para além do impacto visual e da reação de espanto, o fenômeno dos bebês Reborn revela um sintoma mais profundo da nossa sociedade: a dificuldade de lidar com o afeto real, com o outro real, com a dor real. Estamos mesmo ficando loucos? Ou estamos apenas tentando sobreviver emocionalmente em uma sociedade que nos adoece afetivamente?
O que são os Bebês Reborn?
A palavra “reborn” vem do inglês e significa literalmente “renascido” ou “nascido de novo”. No contexto das bonecas Reborn, o termo se refere à ideia de dar uma aparência e simbolismo extremamente realistas a um boneco, como se fosse um bebê “renascido”, ou seja, feito para parecer o mais próximo possível de um recém-nascido verdadeiro.
Os Reborns são bonecos artisticamente realistas, com peso, textura e feições que imitam bebês humanos com impressionante fidelidade. Há vários preços, mas uma boneca pode custar mais de R$ 8.000. Além dos bonecos, há acessórios: roupas, berços, certidões de nascimento, carrinhos, mamadeiras e até “hospitais”, “escolas” e “clínicas pediátricas” simbólicas, tudo organizado por empresas especializadas em um mercado, que cresce silenciosamente no Brasil e no mundo.
O fenômeno ganhou força nas redes sociais, especialmente com mulheres adultas, que gravam vídeos amamentando, trocando fraldas e até levando os bonecos para passear. Há cursos para “mães Reborn”, vídeos tutoriais, serviços de “babás” e até “ultrassons” simbólicos.
De onde vem esse apego?
Segundo John Bowlby, criador da Teoria do Apego, a necessidade de vínculo é uma das forças psíquicas mais poderosas da espécie humana. Quando o afeto nos é negado — especialmente na infância — criamos mecanismos simbólicos para tentar suprir esse vazio. Para algumas pessoas, o bebê Reborn funciona como um substituto simbólico de vínculos perdidos, negados ou feridos. Donald Winnicott já falava nos “objetos transicionais” como formas de conforto afetivo na ausência da figura materna. No adulto, um boneco pode funcionar como esse objeto. O problema é quando a transição nunca acontece e o símbolo se transforma em substituição da vida real.
Ajudam ou alienam?
Quando o uso pode ser saudável:
• Luto por perdas gestacionais ou neonatais: o Reborn pode representar o vínculo não vivido e facilitar a despedida simbólica.
• Infertilidade, histerectomia ou menopausa precoce: a boneca pode simbolizar a aceitação da impossibilidade da maternidade biológica.
• Quadros de Alzheimer ou demência: estudos como o da University of Manchester (2016) mostram melhora no humor e redução de agressividade com o uso dos bonecos.
• Histórico de negligência ou abuso infantil: o boneco simboliza a reparação do “eu ferido” através do cuidado de si.
Nesses contextos, o Reborn pode ser um recurso terapêutico com supervisão profissional, como um objeto de elaboração simbólica.
Quando vira problema:
• Apego excessivo, onde o boneco substitui o contato com seres humanos reais.
• Negação da realidade, quando a pessoa acredita que o boneco é um bebê vivo.
• Fuga emocional, em que se evita lidar com traumas, perdas ou frustrações reais.
• Isolamento social, quando a pessoa restringe seus vínculos afetivos ao mundo simbólico do boneco.
Marion Woodman, psicóloga junguiana, alertava que “todo símbolo que é tomado como literal se transforma em prisão”. E é exatamente esse o risco: transformar um recurso terapêutico em alienação emocional.
Por que não adotar uma criança de verdade?
Essa pergunta é delicada, mas necessária. Se o desejo é cuidar, nutrir, proteger… por que não canalizar esse afeto para uma criança real?
A resposta não é simples. Cuidar de uma criança real exige entrega, sacrifício, renúncia, confronto com a alteridade. O bebê Reborn, talvez, seja tão popular justamente por isso: ele oferece a fantasia da maternidade sem a imprevisibilidade da criança real. O boneco nunca chora de madrugada, nunca responde “não”, nunca frustra, nunca exige além do que se quer dar. É o controle total sobre um vínculo afetivo simulado, seguro e previsível.
Em contrapartida, o valor gasto com um Reborn poderia, sim, ser redirecionado para projetos sociais, ajuda a crianças em situação de risco, adoção, apadrinhamento de abrigos, entre tantas outras opções. No entanto, para isso seria preciso abrir mão do controle simbólico e entrar no campo do afeto real, justamente aquele que dói, cansa, mas transforma.
Um mercado sobre carência afetiva
A comercialização dos Reborns se tornou um negócio altamente lucrativo. Há fábricas, escolas fictícias, maternidades simbólicas, vídeos no YouTube com milhões de visualizações, e toda uma indústria que explora a carência emocional de adultos, que não encontraram (ou não encontram) acolhimento na vida real.
Como a antropóloga Marcia Tiburi escreveu, “quando o afeto se torna produto, é sinal de que o vínculo humano falhou”. O capitalismo afetivo transforma o consolo simbólico em mercadoria, e o que era para ser terapêutico pode virar vício emocional, e consumo.
A antropomorfização dos pets e dos bonecos
O fenômeno dos Reborns está diretamente ligado ao movimento crescente de atribuir características humanas a animais de estimação (antropomorfismo). Roupas, festas de aniversário, babás, escolas para animais de estimação (pets), tudo isso aponta para o mesmo sintoma: fuga da frustração da convivência humana.
Animais e bonecos não ferem, não abandonam, não nos confrontam emocionalmente. Por isso, parecem vínculos mais “seguros”. Só que essa segurança tem um preço: a solidão. Viver rodeado de afeto simbólico pode confortar por um tempo, mas jamais substitui o calor de um toque humano, e, no caso dos bonecos, a troca viva de um vínculo real.
Loucura ou carência?
As pessoas não estão “ficando loucas”. Elas estão tentando lidar com o vazio afetivo de uma sociedade cada vez mais fragmentada, individualista e solitária. Estão tentando sobreviver ao colapso das relações reais, à solidão emocional e à falta de espaços seguros para elaborar suas dores. O bebê Reborn, como os pets antropomorfizados, e os mundos fictícios das redes sociais, são tentativas simbólicas de preencher o próprio vazio, e, também, sintomas visíveis de um sofrimento invisível.
No entanto, um símbolo não substitui a realidade, e o afeto simulado pode acabar nos afastando ainda mais do afeto real, aquele que nos desafia, que exige entrega, mas que também nos transforma. É justamente aqui que a Psicologia entra. A busca por um psicólogo não é um sinal de fraqueza, mas de coragem. É admitir que algo dói, que algo não vai bem, e que você merece mais do que paliativos e bengalas emocionais.
O papel da Psicologia não é julgar, mas entender, acolher e ajudar a transformar, porque, por trás de cada boneco embalado com amor, pode haver uma criança interior que nunca foi acolhida. Com o apoio profissional certo, o Reborn pode deixar de ser um substituto e se tornar uma ponte: um elo simbólico para chegar à dor verdadeira e ressignificá-la. Sem julgamentos, sem pressões, mas com acolhimento, escuta profunda e cuidado clínico. A psicoterapia é o espaço onde o afeto simbólico pode se transformar em elaboração real. Onde a criança interior finalmente pode ser ouvida, cuidada e libertada.
E você? Está se apegando nas bengalas emocionais ou está pronto(a) para cuidar da sua dor real?

*Sergio Manzione é psicólogo clínico, administrador, podcaster, colunista sobre comportamento humano e psicologia no Portal Muita Informação!, e escreveu o livro “Viva Sem Ansiedade – oito caminhos para uma vida feliz”. @psicomanzione
Sérgio Manzione
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