O desrespeito às regras: narcisistas, psicopatas ou o quê?
Você já presenciou alguém estacionando em vagas destinadas a idosos, deficientes ou autistas sem qualquer consideração? Esse comportamento reflete traços profundos da personalidade humana
Quando uma pessoa ignora regras simples, como as de estacionamento em vagas reservadas, pode haver diversos fatores em jogo. Primeiramente, a percepção de impunidade é um fator significativo. Muitas pessoas desrespeitam as regras porque acreditam que não enfrentarão consequências. Essa sensação de que as normas podem ser ignoradas sem prejuízo pessoal fortalece o comportamento inadequado.
Além disso, a desvalorização das regras em si é uma explicação importante. Para algumas pessoas, normas como as de vagas reservadas parecem triviais ou meras sugestões, em vez de obrigações. Essa racionalização permite que minimizem o impacto de suas ações, e ignorem o bem-estar coletivo.
Narcisismo e desrespeito às regras
O narcisismo é uma característica de personalidade marcada por uma visão inflada de si mesmo, e a busca incessante por validação e superioridade. Um narcisista que desrespeita regras, como estacionar em vagas reservadas, o faz acreditando que suas necessidades e desejos são mais importantes do que os dos outros. Ele sente que merece mais e que as regras não se aplicam a ele.
Sigmund Freud, o pai da psicanálise, explorou o conceito de narcisismo e como ele molda a personalidade. Freud acreditava que passamos por uma fase narcisista na infância, mas que a maioria das pessoas aprende a equilibrar suas próprias necessidades com as dos outros conforme amadurecem. No entanto, para o narcisista adulto, essa transição nunca é completamente feita, resultando em uma visão distorcida de seu lugar no mundo, uma visão infantil e egocêntrica.
Narcisistas muitas vezes têm a autoestima fragilizada, que precisam compensar por meio de comportamentos exagerados e de um senso inflado de importância. Para eles, manter uma imagem de superioridade é uma forma de proteger-se de sentimentos de inadequação e vulnerabilidade. A necessidade de ser admirado e a tendência de desvalorizar os outros são estratégias para evitar confrontar e lidar com sentimentos de inferioridade e inadequação. Em vez de enfrentar essas inseguranças diretamente, o narcisista projeta uma imagem de perfeição e superioridade para se sentir melhor.
Imagine, por exemplo, um executivo apressado, que estaciona seu carro de luxo em uma vaga destinada a deficientes, ou, então, fura filas. Ele justifica para si mesmo que está com pressa e que sua urgência é mais importante, que as necessidades de outras pessoas. Essa atitude reflete o individualismo exacerbado que caracteriza nossa sociedade, onde o bem-estar pessoal é priorizado em detrimento do bem comum. Esse comportamento é um exemplo clássico de narcisismo cotidiano.
Quando um narcisista é questionado por esse tipo de atitude, sua reação tende a ser agressiva, defensiva ou debochada, expressando falta de responsabilidade e empatia. Muitas vezes, ele pode retrucar com frases como “E daí?”, demonstrando indiferença e reforçando sua sensação de superioridade. Para ele, ser confrontado é um insulto à sua autoimagem inflada, o que frequentemente provoca uma resposta agressiva ou de menosprezo. Esse tipo de atitude vem dos chamados orgulhosos, arrogantes, pedantes etc., sempre refletindo problemas na personalidade ligados, provavelmente, com a fixação na infância.
No entanto, se o narcisista tiver uma deficiência, ou um parente, ele pode usar essa condição como forma de atrair atenção e reforçar seu senso de superioridade, seja mostrando o quanto ele “cuida” ou “sofre” com essa situação, ou buscando reconhecimento e elogios dos outros.
Psicopatia e comportamento desrespeitoso
Diferentemente do narcisista, que age por uma sensação de superioridade, o psicopata desrespeita regras porque simplesmente não se importa com os outros. A psicopatia é caracterizada pela falta de empatia e remorso. Para o psicopata, as regras sociais são vistas apenas como obstáculos a serem superados para atingir seus próprios objetivos.
O psicólogo canadense Robert Hare, que desenvolveu a “Escala de Psicopatia de Hare”, identificou que psicopatas possuem um charme superficial e são cativantes no início, mas carecem de laços emocionais verdadeiros. Imagine uma pessoa que, sem remorso, constantemente desrespeita as vagas reservadas, não por se sentir superior, mas porque, simplesmente, não se importa com quem está sendo prejudicado.
Quando questionado sobre o motivo de estacionar em uma vaga reservada, por exemplo, o psicopata não manifesta culpa ou constrangimento. Sua reação é fria e calculada. Ele pode mentir descaradamente para sair da situação ou até mesmo fingir arrependimento para evitar conflitos, embora não sinta remorso genuíno. A incapacidade de sentir empatia pelos outros torna a reação do psicopata desprovida de qualquer conexão emocional. Para ele, é apenas uma questão de conveniência, e a confrontação não gera impacto emocional ou moral.
No caso do psicopata, mesmo que ele ou um parente tenha deficiência, a questão emocional e empática será praticamente ausente. Ele pode usar a condição de deficiência como uma forma de manipular ou explorar o sistema para conseguir o que quer. Se ele tiver a oportunidade de tirar proveito da situação para seu próprio benefício, o fará sem remorso, seja através de esquemas fraudulentos, seja maximizando as vantagens pessoais.
Outras explicações para o desrespeito às regras
Vamos considerar também a pressão social e as heranças culturais, que têm grande peso nesse comportamento de desrespeito. No Brasil, a famosa “Lei de Gerson” ilustra a mentalidade que valoriza a esperteza e o individualismo. Essa expressão surgiu em uma campanha publicitária para o cigarro Vila Rica em 1976. Na propaganda, Gerson, o camisa 8 da Seleção tricampeão de futebol de 1970, dizia: “Eu gosto de levar vantagem em tudo, certo?” Isso popularizou a ideia de que buscar benefícios pessoais, mesmo que isso signifique quebrar regras, é aceitável, e até valorizado.
O “jeitinho brasileiro”, por sua vez, é uma expressão cultural que envolve driblar dificuldades e regras de forma criativa, mas nem sempre ética. Esse comportamento, herança de uma sociedade marcada por desigualdades históricas, muitas vezes leva as pessoas a ignorar normas para obter vantagens pessoais. Quando alguém estaciona em uma vaga reservada e justifica isso com “só por cinco minutinhos” ou porque “não tem ninguém usando”, é o jeitinho brasileiro se manifestando no cotidiano da forma cínica e prepotente.
Essas influências culturais, somadas à pressão social, podem fazer com que um indivíduo se sinta justificado em desrespeitar regras se perceber que outros também o fazem sem serem punidos. A sensação de impunidade, combinada com o comportamento coletivo de desrespeito, reforça essa atitude.
Enfim…
O problema vai além da impunidade; envolve a aceitação de que “levar vantagem” é algo inteligente. A “Lei de Gerson” e o jeitinho brasileiro, usados para driblar regras em benefício próprio, não são sinais de astúcia, mas de comportamento moralmente falido. Precisamos mudar essa mentalidade e ensinar que seguir regras é um sinal de civilidade e respeito pelo próximo, e a educação desde a infância deve enfatizar que regras garantem uma convivência justa. Pais e instituições de ensino têm papéis cruciais em educar para a ética e premiar atitudes de respeito.
A sociedade também deve ser mais rigorosa com quem desrespeita normas, com fiscalização e punições efetivas. É essencial valorizar a conduta correta e não glorificar a “esperteza” de quem burla regras.
Ouça no meu podcast “Psicologia Cotidiana” o mesmo tema com outras reflexões.
*Sergio Manzione é psicólogo clínico, administrador, podcaster, colunista sobre comportamento humano e psicologia no Portal Muita Informação!, e escreveu o livro “Viva Sem Ansiedade – oito caminhos para uma vida feliz”. @psicomanzione
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