Deixem as mãos livres do mercado aonde eu possa vê-las

Sócrates Santana aborda crítica à invisibilidade das ações do mercado e à apropriação do discurso liberal por interesses privados


Sócrates Santana
Sócrates Santana 16/04/2025 15:21 • Artigos
Deixem as mãos livres do mercado aonde eu possa vê-las - Divulgação

Se me permitem, direi que o mundo anda mais confuso do que nunca, embora a confusão nunca tenha tirado férias. Agora falam de liberalismo como se fosse uma religião em crise, com seus dogmas, seus milagres esperados e seus apóstolos divididos entre o púlpito e o cadafalso. Vemos de um lado um Trump que, armado até os dentes de tarifas e ameaças, cospe na cara do livre mercado que jurava defender. Pergunto, como quem se perdeu numa rua sem placas: desde quando um liberal impõe tarifas como quem impõe o silêncio? Desde quando se pode pregar o mercado livre com um revólver em punho?

Do outro lado do tabuleiro, lá está Milei, um libertário que mais parece personagem de ficção — se a ficção tivesse coragem de tanto. Prometeu reduzir impostos até sobrar só o pó do imposto, cortar o Estado até não restar nem o café dos funcionários. E, com reverência quase eclesiástica, aceitou a reciprocidade tarifária que Trump impôs. Onde está, então, o liberalismo? É um cachorro sem dono? É uma fábula contada por loucos, cheia de som e fúria, significando nada?

Não se sabe mais quem é liberal e quem é apenas um ventríloquo da ocasião. Será possível ser liberal no século XXI, num mundo onde as promessas mudam conforme a plateia, e a coerência é vista como um luxo ultrapassado? Ou será que o liberalismo se partiu em pedaços, como um espelho velho, refletindo múltiplos rostos que não se reconhecem uns nos outros?

Como ser liberal se os próprios liberais já não concordam sobre o que significa sê-lo? Não será, talvez, que o liberalismo foi cooptado pelos interesses que diz combater? Não será que, como em tudo, o nome persiste enquanto o conteúdo apodrece?

E no fim das contas, quem nos explica esse paradoxo de Milei e Trump senão o próprio tempo, que ri de nossas teorias e molda a história segundo caprichos que não cabem em manuais?

E o tempo, esse senhor de barba branca que não se apressa por ninguém, observa, impassível, os discursos inflamados dos paladinos do mercado, como quem assiste a um teatro repetido pela milésima vez. Milei grita contra o Estado enquanto escreve cartas de amor a Washington, ajoelhando-se diante das exigências de um protecionismo que ele mesmo chamaria de crime, se praticado por outro. Trump, esse cowboy fora de época, joga tarifas como quem lança dados, e chama isso de estratégia, quando talvez seja apenas medo disfarçado de bravura.

Então volto a perguntar, como quem pergunta ao vento, e o vento não responde: o que é ser liberal, afinal? É cortar o Estado como se corta uma árvore, sem olhar se ela dá sombra, se abriga pássaros, se sustenta o solo? Ou é permitir ao mercado uma liberdade tão absoluta que se transforma em tirania, onde poucos mandam e muitos obedecem? E mais: será que a liberdade pregada não é apenas uma outra forma de prisão, dourada para uns, invisível para outros?

Ah, se ao menos houvesse uma bússola, um mapa, uma constelação a guiar os liberais modernos. Mas não há. Só há contradições. O livre mercado que se protege com muros. A redução do Estado que implora por alianças com superpotências. O discurso da liberdade que coabita com a censura econômica do mais forte sobre o mais fraco.

Talvez, e digo talvez como quem pisa em gelo fino, o liberalismo do século XXI não seja mais um pensamento, mas um espelho quebrado. Um espelho em que cada um escolhe o estilhaço que melhor lhe reflete. Um Milei olha e vê liberdade. Um Trump olha e vê poder. E nós, simples mortais do outro lado da vitrine, olhamos e vemos o quê? Vemos o caos, talvez. Vemos o oportunismo. Vemos, quem sabe, a falência de uma ideia que foi bela, mas que envelheceu sem dignidade.

E assim seguimos, como sempre seguimos, entre promessas e desilusões, esperando que um dia alguém nos diga — sem gritar — o que, de fato, significa ser livre.

E quando, porventura, esse alguém nos disser — se é que virá — talvez já não estejamos mais aqui, pois o mundo não espera pelos que duvidam, e a política tem pressa, mesmo quando corre em círculos. Enquanto isso, os mercados tremem ao menor sussurro, como animais nervosos antes da tempestade. Os governos juram fidelidade a princípios que abandonam na primeira esquina. E o povo, esse eterno espectador e vítima, assiste ao espetáculo sem saber se aplaude, se vai embora ou se sobe ao palco para interromper a farsa.

Mas há uma pergunta que insiste, que não se cala, que me acorda como um tambor na madrugada: e se o problema não for o liberalismo, mas o mundo que tenta praticá-lo? Um mundo desigual, violento, feito de abismos e muralhas. Um mundo onde as leis do mercado são leis apenas para quem pode comprá-las, e onde a concorrência é livre só para quem já venceu antes de começar. Como pedir liberdade econômica a quem nunca teve liberdade de existir plenamente?

Talvez seja essa a grande farsa de nosso tempo: disfarçar interesses próprios com discursos universais. Porque quando Milei fala de cortar impostos, não fala dos mesmos impostos que pesam sobre os ombros de um vendedor ambulante em Buenos Aires. E quando Trump fala de proteger empregos, não fala dos empregos de imigrantes que colhem frutas na Califórnia por um salário invisível. O liberalismo, nesse jogo, virou fantasia para os poderosos e pesadelo para os esquecidos.

Ah, mas ainda me pergunto: e se houver um outro caminho? Um liberalismo que não seja niilista nem messiânico, nem adorador do Estado nem seu inimigo jurado? Um liberalismo que compreenda que o mercado é ferramenta e não deus, que o lucro não pode ser bússola sem que nos percamos todos? Seria utopia? Seria ingenuidade?

Não sei. Só sei que, enquanto isso, continuamos a ouvir discursos sobre liberdade de quem não sabe o preço do pão, a importância do SUS, ou o que significa esperar quatro horas por um ônibus. Continuamos a ver economistas de paletó explicarem o mundo com gráficos que não mostram o frio, a fome, a solidão. E continuamos, como sempre, a perguntar — e talvez nisso resida nossa única salvação — se ainda há sentido em buscar coerência onde impera o cinismo.

Porque talvez, quem sabe, ser verdadeiramente liberal no século XXI seja justamente isso: recusar os rótulos prontos, questionar os heróis de ocasião, e lembrar que liberdade sem justiça é só outro nome para o abandono.

E se liberdade for apenas uma palavra, como tantas outras que o tempo desgastou, que os poderosos sequestraram, que os manuais esterilizaram? Porque falar de liberdade, de liberalismo, de mercado, de Estado, tornou-se um jogo semânticode sombras e disfarces, onde os significados deslizam como peixes entre os dedos. O que hoje é liberdade para um, ontem foi opressão para outro, e amanhã será, talvez, apenas silêncio.

Vejamos então o paradoxo com olhos limpos, se é que ainda temos olhos limpos. Milei, com seus gestos performáticos, jura amor à liberdade como quem jura lealdade a um fantasma. Mas o que faz é entregar a soberania nacional em bandeja, como oferenda a um império em decadência. Reduzir o Estado, dizem — mas quem cuida dos que nada têm, senão o Estado? Quem regula os que abusam, senão um princípio superior ao lucro? E se o Estado é o problema, o mercado é a solução ou só um novo tirano vestido com cifras e algoritmos?

Trump, por sua vez, se diz patriota. Mas seu patriotismo é o velho nacionalismo econômico travestido de bravura, é o velho protecionismo que pisa no pescoço do livre comércio quando este já não serve aos seus. E os liberais, os de verdade, os de ontem, os de leitura atenta e pensamento lúcido, onde estão? Estão perplexos, estão calados, estão mortos?

Talvez sejamos todos órfãos de uma ideia. Uma ideia que quis ser ciência, quis ser moral, quis ser sistema — mas que hoje é campo de batalha entre caricaturas. O liberalismo de Trump não é liberalismo. O de Milei tampouco. São projetos de poder, estratégias de sobrevivência ideológica, máscaras que não resistem ao suor da realidade.

Mas insisto: haverá ainda, no fundo dessa noite que chamamos século XXI, uma centelha que salve o pensamento liberal da sua própria caricatura? Um pensamento que aceite a complexidade, que abrace a dúvida, que compreenda que a liberdade sem igualdade é o triunfo dos fortes, e a igualdade sem liberdade é o desespero dos fracos?

Não tenho respostas. Só tenho perguntas. E talvez seja isso o que nos reste: perguntar. Perguntar até o fim. Porque só pergunta quem ainda não desistiu. E o mundo, mesmo este mundo de paradoxos gritantes, ainda precisa — mais do que tudo — de quem não desista.

“Deixe as mãos livres do mercado aonde eu possa vê-las” — alguém bem que poderia gritar com lucidez e ironia, como quem já não confia nas palavras e precisa ver os gestos. E que bela frase, essa. Porque há uma diferença imensa entre mãos livres e mãos invisíveis. A invisibilidade, que tanto encantou os adoradores de Adam Smith, tornou-se escudo para a impunidade, para a especulação, para a exploração. A liberdade que não se mostra, que se esconde nos paraísos fiscais, nas bolsas de valores, nos contratos de cem páginas redigidos em língua morta, é liberdade ou é truque de mágica?

O pedido, ou talvez o alerta — “aonde eu possa vê-las” — é um clamor por transparência, por responsabilidade. É dizer: liberdade sim, mas não no escuro. É exigir que as mãos que agem, que compram, que vendem, que cortam, que acumulam, que decidem o preço do pão e o valor do trabalho, sejam vistas, identificadas, nomeadas. Porque só se pode confiar no que se conhece. Só se pode julgar o que se mostra.

As mãos livres do mercado têm sido, tantas vezes, mãos sujas. Mãos que despedem, que especulam contra moedas, que secam rios em nome de ações valorizadas. Mãos que apertam outras mãos em jantares de cúpula, decidindo o destino de nações sem consulta, sem voto, sem rosto. Mãos que se dizem técnicas, mas que são profundamente políticas. Mãos que carregam sangue, mas escrevem relatórios.

E então nos perguntamos: que liberdade é essa que exige segredo? Que sistema é esse que floresce apenas nas sombras? Se o mercado é tão bom, tão eficiente, tão sábio como dizem, por que tem medo da luz? Por que teme a regulação, a fiscalização, o olhar atento da sociedade?

Talvez porque a mão invisível não goste de ser pega no ato. Talvez porque o livre mercado, tão proclamado, funcione melhor quando ninguém olha de perto. E por isso a frase é uma convocação à vigilância. Deixe-as à mostra, as mãos do mercado. Mostre-nos o que fazem. Mostre-nos para quem trabalham. Mostre-nos quem se beneficia. Só assim poderemos dizer se é liberdade ou farsa, se é justiça ou predação.

Porque, no fim das contas, o problema nunca foi o mercado em si, mas o fetiche da invisibilidade. E como disse alguém que entendeu cedo demais, “tudo que é sólido desmancha no ar” — inclusive as mãos que juraram nos sustentar.

Portanto, senhor mercado, senhor liberalismo, senhor capital globalizado e senhor Estado mínimo, faça-nos um favor: coloque as mãos livres do mercado aonde eu possa vê-las. Não as esconda atrás de discursos técnicos, não as maquie com promessas de crescimento eterno, não as lave como Pilatos dizendo que a culpa é da demanda, da oferta, da inflação ou de algum país distante que não se comportou.

Coloque as mãos em cima da mesa. Mostre-nos o que seguram: contratos ou facas? Investimentos ou algemas? Mostre-nos onde pousam: no ombro dos pequenos empreendedores ou no pescoço dos trabalhadores? Porque não se pode continuar pedindo confiança com mãos escondidas, não se pode exigir fé com dedos cruzados nas costas.

Coloque as mãos livres do mercado aonde eu possa vê-las — isso, mais à esquerda, um pouco mais à direita, cuidado com o bolso —, e talvez assim possamos, com algum esforço e muito ceticismo, começar a conversar de novo. Até lá, seguimos olhando atentos, como quem entra num salão e sabe que ali se joga pôquer com cartas marcadas.

Porque, no fundo, liberdade verdadeira nunca teve medo da luz. E quem tem, talvez não esteja tão livre quanto diz.

*Sócrates Santana é jornalista e gestor de inovação

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