Quando olhamos para os preconceitos, que permeiam nossa sociedade, é essencial entender que eles não surgiram do nada. Suas raízes são profundas e se conectam à nossa história evolutiva. Há cerca de 10.000 anos, quando nossos ancestrais viviam em tribos, o preconceito tinha a função de proteção. Desconfiar do “diferente” era uma estratégia de sobrevivência. O antropólogo Robert Sapolsky, conhecido por suas pesquisas sobre biologia comportamental e neurociência, fala sobre como o medo do desconhecido era uma defesa instintiva contra ameaças à segurança do grupo. Hoje, no entanto, essa função já não se aplica da mesma maneira.
Preconceito: de mecanismo de sobrevivência a ferramenta de exclusão
Nos tempos modernos, o preconceito perdeu sua função original de proteção. Vivemos em um mundo interconectado, onde a diversidade é a norma. O que antes servia para preservar a vida em grupo agora, frequentemente, é uma ferramenta de dominação e exclusão. Isso é particularmente evidente nas estruturas de poder que se perpetuam, como o patriarcado e o machismo, legados ancestrais, que continuam a afetar profunda e cotidianamente nossas interações sociais. O patriarcado, por exemplo, é uma herança que promove a ideia de que os homens são superiores às mulheres, resultando em desigualdades e na perpetuação da misoginia, que é o ódio ou aversão às mulheres.
A misoginia surge desse contexto, onde a desvalorização da mulher e a objetificação são normalizadas. O machismo se alimenta de um ciclo de repetição sem reflexão, onde comportamentos e crenças são transmitidos de geração em geração sem questionamento. Isso se reflete em diversas esferas da sociedade, desde a cultura popular até as estruturas familiares, que frequentemente reforçam estereótipos de gênero prejudiciais.
A ignorância como nutriente do preconceito
A ignorância é um dos maiores fertilizantes do preconceito! Gordon Allport, psicólogo norte-americano conhecido por seu trabalho pioneiro no estudo do preconceito, argumentou que o preconceito se perpetua onde não há contato real entre diferentes grupos. Sem esse contato, as ideias preconcebidas se fortalecem, alimentadas por desinformação e estereótipos. No Brasil, por exemplo, vemos isso na discriminação contra nordestinos, onde os estereótipos sobre sotaque, educação, modo de vida ou origem são usados para excluir e marginalizar. Outro exemplo de discriminação, mesmo que sutil, ocorre quando as pessoas são julgadas por não falarem corretamente uma palavra em inglês, como se a fluência em outro idioma fosse uma régua definitiva para medir inteligência ou capacidade.
Narrativas culturais e históricas, como o racismo herdado do período colonial, ainda são reproduzidas no nosso cotidiano de forma automática. Essa herança é tanta, que passa a fazer parte da estrutura sociedade é o racismo ou o preconceito estrutural. O Brasil, aliás, foi o país que trouxe o maior número de escravizados no mundo, mais de 5 milhões de seres humanos, que aqui também encontraram uma igreja preconceituosa. Quando os religiosos emanciparam seus escravizados em 1871, somente os beneditinos tinham 4 mil escravizados, sem contar com os jesuítas e carmelitas, e, em menor proporção, os franciscanos.
Componentes psicológicos que mantêm o preconceito vivo
Vários fatores psicológicos e sociais contribuem para a manutenção dos preconceitos:
- Medo do desconhecido: Esse medo, que ajudou nossos ancestrais a sobreviver, se transforma hoje em xenofobia. Tememos o que não conhecemos, e isso se manifesta em hostilidade, especialmente contra imigrantes, estrangeiros, ou pessoas de outras raças e etnias.
- Projeção psicológica: Sigmund Freud, o “pai” da psicanálise, introduziu a ideia de que projetamos em outros nossos próprios medos e inseguranças. Isso pode ser claramente observado na homofobia, onde algumas pessoas, que não assumem suas orientações sexuais, podem atacar o grupo LGBTQIA+ como forma de negar seus próprios desejos. Em uma sociedade como a brasileira, onde a masculinidade muitas vezes é vista de forma rígida, esse fenômeno é acentuado.
- Conformidade social: Henri Tajfel, importante psicólogo social que desenvolveu a teoria da identidade social, mostrou como categorizamos o mundo em “nós” e “eles”, o que alimenta preconceitos. No Brasil, essa divisão é amplamente visível nas discriminações contra minorias, como negros, indígenas, homoafetivos e pobres, sem falar das divisões sociais criadas por políticos em busca de poder. A questão racial é especialmente relevante aqui, com um histórico de escravidão, que ainda reverbera em desigualdades econômicas e sociais.
- Ignorância e desinformação: A falta de conhecimento e educação perpetua preconceitos. Em um país de grandes contrastes econômicos como o Brasil, onde o acesso à educação de qualidade é muito restrito, a desinformação alimenta o preconceito contra religiões de matriz africana, orientações sexuais diversas, regiões, e até classes sociais mais baixas.
- Reflexos culturais: Narrativas históricas e culturais perpetuam preconceitos que já foram institucionalizados em diferentes sociedades. O racismo no Brasil, por exemplo, é uma herança colonial, profundamente enraizada em nosso inconsciente coletivo. Esses preconceitos muitas vezes se manifestam no cotidiano, seja por piadas, tratamentos diferenciados ou exclusão de oportunidades. Racismo é crime: denuncie!
O que fazer?
Ao considerar tudo isso, me pergunto: será que ainda somos homens das cavernas? Será que a necessidade de proteger nosso grupo e desconfiar do outro ainda está tão enraizada em nós, que nos impede de evoluir? O preconceito está no nosso DNA?
Eu acredito que não precisa ser assim. O preconceito, como construção social, pode ser desconstruído. Se em algum momento ele teve uma função protetora, hoje ele é um obstáculo para uma sociedade mais justa. A educação é a chave, sempre insisto nisso. Ao nos expormos a diferentes culturas, estilos de vida e realidades, começamos a quebrar as generalizações perniciosas e que só trazem divisões. Precisamos de mais programas de inclusão, políticas de diversidade e ações afirmativas. A mídia e as redes sociais, em vez de amplificar o preconceito, podem ser usadas como ferramentas para promover o diálogo.
A mudança começa em nós, com a consciência de que o preconceito não tem mais lugar no mundo moderno. Procure ampliar a visão do mundo, desenvolvendo a empatia real, e se afastando da tentação do “achismo”, que é o equivalente a assistir a apenas um capítulo da novela e dizer que conhece a história toda. Procure informações em fontes confiáveis diversas, e não só nos grupinhos das redes sociais, que repetem sempre a mesma narrativa. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche disse que o pior inimigo da verdade são as convicções. Se as suas são inabaláveis não haverá problema em questioná-las, certo?
Ouça no meu podcast “Psicologia Cotidiana” o mesmo tema com outras reflexões.
*Sergio Manzione é psicólogo clínico, administrador, podcaster, colunista sobre comportamento humano e psicologia no Portal Muita Informação!, e escreveu o livro “Viva Sem Ansiedade – oito caminhos para uma vida feliz”. @psicomanzione