A ignorância é a mãe do preconceito?

De onde vem o preconceito? Será que ele é só fruto da ignorância ou algo mais profundo? Por que ele se tornou uma ferramenta de exclusão. Será que ainda estamos presos a instintos que não fazem mais sentido?


Sérgio Manzione
Sérgio Manzione 28/09/2024 17:45 • Artigos
A ignorância é a mãe do preconceito? -

Quando olhamos para os preconceitos, que permeiam nossa sociedade, é essencial entender que eles não surgiram do nada. Suas raízes são profundas e se conectam à nossa história evolutiva. Há cerca de 10.000 anos, quando nossos ancestrais viviam em tribos, o preconceito tinha a função de proteção. Desconfiar do “diferente” era uma estratégia de sobrevivência. O antropólogo Robert Sapolsky, conhecido por suas pesquisas sobre biologia comportamental e neurociência, fala sobre como o medo do desconhecido era uma defesa instintiva contra ameaças à segurança do grupo. Hoje, no entanto, essa função já não se aplica da mesma maneira.

Preconceito: de mecanismo de sobrevivência a ferramenta de exclusão

Nos tempos modernos, o preconceito perdeu sua função original de proteção. Vivemos em um mundo interconectado, onde a diversidade é a norma. O que antes servia para preservar a vida em grupo agora, frequentemente, é uma ferramenta de dominação e exclusão. Isso é particularmente evidente nas estruturas de poder que se perpetuam, como o patriarcado e o machismo, legados ancestrais, que continuam a afetar profunda e cotidianamente nossas interações sociais. O patriarcado, por exemplo, é uma herança que promove a ideia de que os homens são superiores às mulheres, resultando em desigualdades e na perpetuação da misoginia, que é o ódio ou aversão às mulheres.

A misoginia surge desse contexto, onde a desvalorização da mulher e a objetificação são normalizadas. O machismo se alimenta de um ciclo de repetição sem reflexão, onde comportamentos e crenças são transmitidos de geração em geração sem questionamento. Isso se reflete em diversas esferas da sociedade, desde a cultura popular até as estruturas familiares, que frequentemente reforçam estereótipos de gênero prejudiciais.

A ignorância como nutriente do preconceito

A ignorância é um dos maiores fertilizantes do preconceito! Gordon Allport, psicólogo norte-americano conhecido por seu trabalho pioneiro no estudo do preconceito, argumentou que o preconceito se perpetua onde não há contato real entre diferentes grupos. Sem esse contato, as ideias preconcebidas se fortalecem, alimentadas por desinformação e estereótipos. No Brasil, por exemplo, vemos isso na discriminação contra nordestinos, onde os estereótipos sobre sotaque, educação, modo de vida ou origem são usados para excluir e marginalizar. Outro exemplo de discriminação, mesmo que sutil, ocorre quando as pessoas são julgadas por não falarem corretamente uma palavra em inglês, como se a fluência em outro idioma fosse uma régua definitiva para medir inteligência ou capacidade.

Narrativas culturais e históricas, como o racismo herdado do período colonial, ainda são reproduzidas no nosso cotidiano de forma automática. Essa herança é tanta, que passa a fazer parte da estrutura sociedade é o racismo ou o preconceito estrutural. O Brasil, aliás, foi o país que trouxe o maior número de escravizados no mundo, mais de 5 milhões de seres humanos, que aqui também encontraram uma igreja preconceituosa. Quando os religiosos emanciparam seus escravizados em 1871, somente os beneditinos tinham 4 mil escravizados, sem contar com os jesuítas e carmelitas, e, em menor proporção, os franciscanos.

Componentes psicológicos que mantêm o preconceito vivo

Vários fatores psicológicos e sociais contribuem para a manutenção dos preconceitos:

  1. Medo do desconhecido: Esse medo, que ajudou nossos ancestrais a sobreviver, se transforma hoje em xenofobia. Tememos o que não conhecemos, e isso se manifesta em hostilidade, especialmente contra imigrantes, estrangeiros, ou pessoas de outras raças e etnias.
  2. Projeção psicológica: Sigmund Freud, o “pai” da psicanálise, introduziu a ideia de que projetamos em outros nossos próprios medos e inseguranças. Isso pode ser claramente observado na homofobia, onde algumas pessoas, que não assumem suas orientações sexuais, podem atacar o grupo LGBTQIA+ como forma de negar seus próprios desejos. Em uma sociedade como a brasileira, onde a masculinidade muitas vezes é vista de forma rígida, esse fenômeno é acentuado.
  3. Conformidade social: Henri Tajfel, importante psicólogo social que desenvolveu a teoria da identidade social, mostrou como categorizamos o mundo em “nós” e “eles”, o que alimenta preconceitos. No Brasil, essa divisão é amplamente visível nas discriminações contra minorias, como negros, indígenas, homoafetivos e pobres, sem falar das divisões sociais criadas por políticos em busca de poder. A questão racial é especialmente relevante aqui, com um histórico de escravidão, que ainda reverbera em desigualdades econômicas e sociais.
  4. Ignorância e desinformação: A falta de conhecimento e educação perpetua preconceitos. Em um país de grandes contrastes econômicos como o Brasil, onde o acesso à educação de qualidade é muito restrito, a desinformação alimenta o preconceito contra religiões de matriz africana, orientações sexuais diversas, regiões, e até classes sociais mais baixas.
  5. Reflexos culturais: Narrativas históricas e culturais perpetuam preconceitos que já foram institucionalizados em diferentes sociedades. O racismo no Brasil, por exemplo, é uma herança colonial, profundamente enraizada em nosso inconsciente coletivo. Esses preconceitos muitas vezes se manifestam no cotidiano, seja por piadas, tratamentos diferenciados ou exclusão de oportunidades. Racismo é crime: denuncie!

O que fazer?

Ao considerar tudo isso, me pergunto: será que ainda somos homens das cavernas? Será que a necessidade de proteger nosso grupo e desconfiar do outro ainda está tão enraizada em nós, que nos impede de evoluir? O preconceito está no nosso DNA?

Eu acredito que não precisa ser assim. O preconceito, como construção social, pode ser desconstruído. Se em algum momento ele teve uma função protetora, hoje ele é um obstáculo para uma sociedade mais justa. A educação é a chave, sempre insisto nisso. Ao nos expormos a diferentes culturas, estilos de vida e realidades, começamos a quebrar as generalizações perniciosas e que só trazem divisões. Precisamos de mais programas de inclusão, políticas de diversidade e ações afirmativas. A mídia e as redes sociais, em vez de amplificar o preconceito, podem ser usadas como ferramentas para promover o diálogo.

A mudança começa em nós, com a consciência de que o preconceito não tem mais lugar no mundo moderno. Procure ampliar a visão do mundo, desenvolvendo a empatia real, e se afastando da tentação do “achismo”, que é o equivalente a assistir a apenas um capítulo da novela e dizer que conhece a história toda. Procure informações em fontes confiáveis diversas, e não só nos grupinhos das redes sociais, que repetem sempre a mesma narrativa. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche disse que o pior inimigo da verdade são as convicções. Se as suas são inabaláveis não haverá problema em questioná-las, certo?

Ouça no meu podcast “Psicologia Cotidiana” o mesmo tema com outras reflexões.

*Sergio Manzione é psicólogo clínico, administrador, podcaster, colunista sobre comportamento humano e psicologia no Portal Muita Informação!, e escreveu o livro “Viva Sem Ansiedade – oito caminhos para uma vida feliz”. @psicomanzione

Sérgio Manzione

Sérgio Manzione

Últimas Notícias

Prefeitura de Salvador destrói mais de 3 mil equipamentos de som apreendidos em ações contra poluição sonora -
Cidades 21/05/2025 às 22:30

Prefeitura de Salvador destrói mais de 3 mil equipamentos de som apreendidos em ações contra poluição sonora

Capital baiana registra 10 mil denúncias de poluição sonora em 2025


AGU cobra investigação da PF sobre caso de racismo contra ministra Vera Lúcia, do TSE -
Política 21/05/2025 às 22:20

AGU cobra investigação da PF sobre caso de racismo contra ministra Vera Lúcia, do TSE

Ministra foi impedida de acessar seminário promovido pelo governo federal, mesmo estando escalada como palestrante


Cláusula de contrato da Fonte Nova impede concessão de Pituaçu à iniciativa privada até 2028 -
Esporte 21/05/2025 às 22:00

Cláusula de contrato da Fonte Nova impede concessão de Pituaçu à iniciativa privada até 2028

Contrato da Parceria Público-Privada (PPP) exige que Estádio de Pituaçu funcione como alternativa em casos de indisponibilidade da Arena Fonte Nova


Padre Fábio de Melo desabafa sobre linchamento virtual após polêmica em cafeteria: ‘estou a um passo de desistir’ -
Coluna Ohh! 21/05/2025 às 21:40

Padre Fábio de Melo desabafa sobre linchamento virtual após polêmica em cafeteria: ‘estou a um passo de desistir’

Padre vem sofrendo ataques virtuais após relatar ter sido tratado com grosseria por um gerente de uma cafeteria da rede Havanna, em Joinville (SC)


Bancada de oposição na Câmara de Salvador apresentará emendas coletivas ao PL de reajuste dos servidores -
Política 21/05/2025 às 21:30

Bancada de oposição na Câmara de Salvador apresentará emendas coletivas ao PL de reajuste dos servidores

Projeto deve ser votado nesta quinta-feira (22), durante sessão extraordinária da CMS


OAB-BA empossa Comissão de Direito do Terceiro Setor para triênio 2025-2027 com foco em inovação e justiça social -
Cidades 21/05/2025 às 21:20

OAB-BA empossa Comissão de Direito do Terceiro Setor para triênio 2025-2027 com foco em inovação e justiça social

Advogada Karine Rocha foi reconduzida ao cargo de presidente da Comissão


Alcolumbre diz que PEC do fim da reeleição pode ser votada no Senado na próxima semana -
Política 21/05/2025 às 20:59

Alcolumbre diz que PEC do fim da reeleição pode ser votada no Senado na próxima semana

Proposta estabelece mudanças a partir de 2034 e mantém direito de reeleição até 2030


Morre Dorinha Duval, atriz que interpretou primeira Cuca do Sítio do Picapau Amarelo, aos 96 anos -
Coluna Ohh! 21/05/2025 às 20:40

Morre Dorinha Duval, atriz que interpretou primeira Cuca do Sítio do Picapau Amarelo, aos 96 anos

Com carreira marcada por sucessos na televisão, Dorinha deixou os holofotes após ser condenada por homicídio nos anos 1980


Ex-comandante da Aeronáutica revela ao STF que alertou Bolsonaro sobre ausência de fraudes nas urnas -
Política 21/05/2025 às 20:30

Ex-comandante da Aeronáutica revela ao STF que alertou Bolsonaro sobre ausência de fraudes nas urnas

Depoimento foi prestado como parte das investigações que apuram tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022


Isidório surge com bebê reborn na Câmara e pede que adeptos visitem orfanatos: ‘não vamos trocar o natural por silicone’ -
Política 21/05/2025 às 20:20

Isidório surge com bebê reborn na Câmara e pede que adeptos visitem orfanatos: ‘não vamos trocar o natural por silicone’

Parlamentar afirmou que apego aos bonecos não pode substituir cuidado com crianças reais em situação de vulnerabilidade