A era do conhecimento raso: o imediatismo matando a reflexão
Ler textos longos virou rebeldia. Pensar com profundidade é resistência em um mundo acelerado e desinformado
Imagem gerada por IA
Vivemos um tempo em que textos densos, artigos longos e análises criteriosas parecem ter perdido espaço para conteúdos rápidos, mastigados e superficiais. Como psicólogo e escritor, percebo isso todos os dias: muitos leitores não passam do primeiro parágrafo. Querem soluções instantâneas para problemas complexos, como se a vida tivesse um manual de instruções.
Origens históricas da superficialidade
O desprezo pela profundidade não nasceu com o TikTok ou com os posts de Instagram. Ele tem raízes muito mais antigas. No século XIX, o jornalismo de massa já sinalizava esse caminho com manchetes curtas e impactantes, pensadas para chamar a atenção de um público apressado. O filósofo francês Guy Debord, em “A Sociedade do Espetáculo” (1967), descreveu como as imagens e os slogans começaram a substituir a reflexão crítica.
Na segunda metade do século XX, a televisão consolidou o imediatismo. O formato do telejornal, com blocos de segundos ou minutos, moldou o público a acreditar que informação “comprimida” era suficiente para compreender o mundo. Esse terreno estava pronto para a explosão da internet, onde o raso deixou de ser exceção e virou regra.
Não foi a internet que nos deixou superficiais; ela apenas escancarou e aprofundou uma superficialidade que já existia.
Explicações psicológicas
Do ponto de vista da psicologia, o cenário se agrava porque o cérebro humano busca sempre economia cognitiva. Isso significa que preferimos conteúdos fáceis de processar, mesmo que sejam menos informativos, porque o cérebro sempre busca reduzir o gasto de energia.
O psicólogo norte-americano Herbert Simon já alertava, na década de 1970, que a abundância de informação gera escassez de atenção. Além disso, as redes sociais criaram o que o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han chama de “sociedade do cansaço”, pois a hipercomunicação e a hiperexposição nos exaurem. O resultado é um público incapaz de sustentar a atenção em textos longos, condicionado a consumir migalhas de informação, que funcionam como pequenas doses de dopamina.
Percebo que muitas pessoas não fogem do texto longo apenas por preguiça, mas porque ler profundamente significa se confrontar com verdades incômodas e com a própria ignorância. É mais fácil deslizar o dedo na tela do que encarar aquilo que pode nos mudar. Outros fogem simplesmente porque não conseguem entender os argumentos mais reflexivos.
A crítica cultural
O escritor peruano Mario Vargas Llosa, em “A Civilização do Espetáculo” (2012), afirmou que vivemos um tempo em que o entretenimento tomou o lugar da cultura. Esse diagnóstico encontra eco em Zygmunt Bauman, que, ao falar de “modernidade líquida”, mostrou como nossas relações (inclusive com o conhecimento) se tornaram frágeis, rápidas e descartáveis.
A filosofia de Byung-Chul Han acrescenta outro ponto, o de que na “sociedade da transparência”, todos querem comunicar, mas poucos querem dialogar. O excesso de falas sem escuta real gera apenas ruído. Na minha visão, isso é uma das coisas que explica o vazio que tantas pessoas relatam nas sessões de psicoterapia: estão “cheias de informação”, mas “vazias de sentido”.
Impactos sociais e políticos
Essa superficialidade tem consequências graves:
• Proliferação de fake news: informações rápidas e mal verificadas se espalham mais rápido do que análises profundas.
• Empobrecimento do debate público: a lógica do “tweet” ou do “meme” substitui a argumentação, e cria “verdades”.
• Ascensão do populismo: discursos fáceis, que apelam à emoção, encontram terreno fértil em sociedades desacostumadas ao pensamento crítico.
Vejo isso como um dos maiores riscos do nosso tempo, pois estamos entregando o poder da palavra a quem sabe seduzir, não a quem sabe pensar. Se nada mudar, caminharemos para uma sociedade que acumula conhecimento “fast-food”: rápido, barato e sem valor nutritivo. Pessoas que sabem cada vez mais sobre cada vez menos. O risco é termos uma geração que confunde estar informada com estar formada.
Possíveis saídas
Não se trata de nostalgia de um passado em que todos liam clássicos, até porque esse passado nunca existiu de fato. O que precisamos é resistir ao ritmo imposto pela tecnologia e pelo mercado. Algumas saídas são possíveis:
- Educação crítica: escolas que formem leitores pacientes.
- Valorização do tempo de leitura: ler devagar é um ato revolucionário.
- Produção de conteúdo resistente: é melhor alcançar menos pessoas com profundidade do que muitas com superficialidade.
Como psicólogo, acredito que precisamos resgatar o hábito do mergulho nas ideias. Um cérebro que só vive de estímulos rápidos atrofia sua capacidade de reflexão. Ler devagar é treinar a alma para não viver na superfície.
Umberto Eco e a pergunta que incomoda
O escritor e semiólogo italiano Umberto Eco provocou o mundo ao afirmar que “as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis”. Ele não dizia que as pessoas são imbecis por natureza, mas denunciava o efeito da amplificação, quando vozes desinformadas passaram a ter o mesmo alcance que análises profundas, diluindo a autoridade do conhecimento.
O problema não é a voz, mas o megafone. Antes da internet, opiniões sem fundamento ficavam restritas a pequenos círculos. Hoje, frases rasas se espalham em segundos, enquanto reflexões densas permanecem invisíveis. A “legião”, como Eco chamou, não apenas fala, mas compartilha e alimenta a lógica da superficialidade, resultando num amontoado de lixo. Esse diagnóstico se conecta diretamente com o nosso tempo: vivemos em uma cultura que premia o barulho em vez da verdade. E se não reagirmos, a regra será clara: quem grita mais alto dominará a cena.
É nesse ponto que precisamos nos perguntar: a quem interessa o conhecimento raso? A resposta não é difícil: interessa a quem vende soluções mágicas, a quem manipula pela emoção, a quem lucra com cliques. O conhecimento raso interessa a sistemas que não querem indivíduos críticos, mas consumidores e eleitores obedientes.
Parabéns a você que leu até o fim. Em tempos de pressa, isso é um ato raro, mas profundamente valioso. Então pergunto: você, está disposto a continuar escolhendo ler os assuntos mais profundos, mesmo que o mundo inteiro prefira viver na superfície?

*Sergio Manzione é psicólogo clínico, administrador, podcaster, colunista sobre comportamento humano e psicologia no Portal Muita Informação!, e escreveu o livro “Viva Sem Ansiedade – oito caminhos para uma vida feliz”. Siga no Instagram @psicomanzione
**O conteúdo dos artigos é de responsabilidade dos autores, não correspondendo, necessariamente, à opinião do Portal M!
Sérgio Manzione
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